15.10.16

SEMINÁRIO 1: TRANSFERÊNCIA-DE-USO [Gabriela César]

Atividade 1 – Apertar a face

Foram realizados desenhos escolhendo as seguintes ações: ranger de dentes, acariciar, esfregar os olhos, tocar a face, respirar (utilizando o abdômen para a respiração) e apertar a pele. Cada desenho realizado teve uma relação direta com o ato que foi realizada. "Acariciar" é um desenho de hachuras paralelas que em muito lembra o formato de cabelo (será por isso que sempre relaciono "acariciar" a fazer cafuné? – ou seria mesmo o inverso?). O desenho "Respirar" foi realizado a partir do gesto consciente da respiração utilizando o abdômen, como na meditação. Seu resultado parece justamente documentar uma narrativa suave, com pausas delicadas.
Foi a partir deste momento que o ato de desenhar e os gestos que conduziam a ação parecem se misturar. De fato,  no texto "Actos fingidos" vemos que o desenho é mais do que um registro ou expressão artística. O autor defende que realização do desenho passa pela construção da memória do(a) realizador(a) do desenho, transmite também suas condutas rearranjadas para o mundo do desenho:


(...) funciona então como um mecanismo de transferência, uma forma de transmissão do conhecimento social, da memória e de um sentido de identidade, através de processos reiterados, que repetem, como um ritual, fragmentos de conduta. [1]


Por ser um desenho realizado a partir de um fragmento de comportamento, pode-se afirmar que este exercício teve mesmo uma potência performativa. Minha percepção após sua realização foi muito mais a partir da tomada de consciência desses gestos no meu dia-a-dia do que para o resultado expresso no papel. Schechner (2002) afirma mesmo que o objeto de estudo dos estudos performativos são o comportamento, acima de tudo – e que é necessário realizá-los, pois não é possível estudá-los fora da prática [2]. Não é possível ser ideologicamente neutra neste cenário, ou analisar o desenho realizado separadamente da proposta ou da cultura em que se insere.

A possibilidade do comportamento realizado duas vezes [3] não diminui, contudo, as variáveis de significado dessas "tiras de comportamento" quando deslocadas. Como exemplo, o desenho realizado sobre a ação de tocar a face, realizado durante a atividade em sala de aula (Figuras 1, 2 e 3). A singularidade do ato está não só na ação realizada, mas no fato de ter sido deslocada para outro contexto. Da mesma forma, seu principal resultado não acontece durante sua realização, mas entre a prática e sua potencialidade de transformar quem a realiza ou seus observadores.




Figuras 1, 2 e 3: realização de desenho utilizando marcadores de modo a imitar a ação de apertar a face.

A primeira sensação ao realizar o desenho "Apertar/Espremer" foi a tomada de consciência em relação ao quão violenta é esta atividade. Realizei-a com marcadores que, conforme dava continuidade ao desenho, tiveram suas pontas magoadas pelo movimento. O papel, mesmo sendo de gramatura média (200g), também mostrou-se rapidamente avariado pelo desenho. Foi imediato o desconforto assim que percebi o quão danoso é esse ato, e por extensão o quanto eu não estaria diariamente danificando minha pele ao realizá-lo. Levei o desenho ao extremo do meu desconforto, e só parei quando me vi em vias de chorar, lamentando que pequenas ações de auto-lesão assim passem despercebidas no meu dia-a-dia.
O texto em que Kaprow [4] narra sua experiência em escovar os dentes de maneira consciente/atenta (traduzindo livremente o termo aware utilizado pelo autor, p. 221) parece descrever uma empatia pelo que passei quando diz que nunca havia notado a pressão que realizava nas gengivas ao escovar os dentes, e a maneira como elas sangravam. Kaprow estabelece uma ligação entre a tomada de consciência em atos rotineiros/automáticos em seu dia a dia e o excesso de atividades que estão inseridas em nossas vidas de maneira ritual, sem se ater ao ato executado no presente.
Da mesma forma, ao ver o vídeo da realização do desenho e o resultado do desenho (Figura 4), sou tomada pelo mesmo incômodo, pois consigo perceber nos vestígios deixados pelo gesto a expressão da força utilizada em cada ato. Olhar o desenho traz de volta o ato de desenhar, de maneira retórica. David Rosand [5], ao analisar a construção do significado do desenho, afirma: "Drawing is (re-)enactment" (em tradução livre: desenhar é representar/re-encenar/reconstituir). Rever o desenho é realizá-lo de novo através dos vestígios deixados pelo gesto de desenhar, e criar um laço de empatia com quem o realizou.

Atividade 2 – Acariciar as fendas

Para a segunda atividade, escolhi a ação de re-encenar o ato de acariciar e acalmar uma criança quando a mesma se machuca. Por ser a primeira vez que fiz essa transferência de uma atividade de um campo para o outro, a sensação inicial foi de estranheza. Contudo, conforme ia realizando o ato, percebi que desenvolvia um afeto pelos objetos com os quais interagia (Figuras 5, 6 e 7). Foi, como enuncia Howell [6], uma transferência relativamente fácil de racionalizar posteriormente – estando longe da família há algum tempo, em uma cidade estranha, pude perceber o quanto fazia falta o toque humano e o carinho. Isso pela interação com pedras e pedaços de parede. Vi, naqueles objetos, os verdadeiros sujeitos do meu afeto – meus pais, meu sobrinho, meus avós – cujo toque encontra-se muito longe fisicamente, mas tão vivo em minha memória.




Figuras 5, 6 e 7 – Acariacar fendas no concreto como que para as consolar de suas falhas/mágoas

Também pude perceber uma interessante modificação no "eu" que realizava aquele gesto: não tenho filhos ou irmão pequenos, nunca tive que de fato acalmar ou consolar uma criança que se machuca. De onde veio, então, esta relação afetiva? Schechner [7] analisa que o "eu" dos atos performáticos podem ser livremente recriados ou ensaiados, o comportamento não é o mesmo do que aquele que o realiza: "(...) behaviour is separate from those who are behaving, the behaviour can be stored, transmitted, manipulated, transformed" (p. 36). Este foi um ponto central para meu trabalho com esta ação, já que pude perceber que há certos gestos que carregamos culturalmente conosco, mesmo que nunca os tenhamos realizados exatamente daquela maneira. Como possibilidade simbólica e reflexiva, podemos reencenar qualquer prática dentro das práticas performativas.
Interessante notar também que esta ação não é uma tradução direta de nenhuma outra linguagem, como bem aponta Howell [8]: as atividades performativas somente podem ser expressas pela sua própria linguagem. Para agir de maneira performativa em relação a afetividade, primeiro tive que me confrontar com este problema internamente, sem o intermédio de outros suportes linguísticos. Somente após ver o vídeo do registro do exercício pude compreender melhor o ato e como ele se pode ser expresso em palavras e gerar uma reflexão a luz dos textos que tivemos para discutir. A ordem inversa não me parece possível.


Atividade 3 – Contornar a cadeira

Para a atividade 3, resolvi contornar uma das cadeiras da sala de aula. Parece-me interessante, ao observar o vídeo, que o ato de desenhar pode ter tido seu gestual emprestado de outras atividades como limpar, costurar, demarcar, espalhar (Figura 8). De fato, sem o instrumento de desenho e o suporte, é uma atividade que parece muito com a limpeza dos móveis da casa, tirando-lhes o pó. Outro aspecto que julgo interessante é como todo o corpo parece colaborar para o desenho. Isso é evidenciado tanto nas Figuras 1 a 3 quanto na Figura 9.

Figura 8 – contornar uma cadeira

Figura 9 – contornar uma cadeira (o corpo que desenha)

igura 10 – desenhando em 3 dimensões

Um outro aspecto que me pareceu interessante explorar foi a tridimensionalidade da cadeira a ser desenhada. Claro que, ao desenhar sobre papel, pode-se trabalhar de forma a deixar implícita as dimensões volumétricas dos objetos, mas ela não está de fato lá: quem visualiza o desenho acredita na ilusão que criamos. Ao desenhar sem suporte, mas sobre um objeto 3D, de fato, tive a oportunidade de trabalhar todas as linhas e dar a volta a cadeira.  O experimento foi muito interessante e trouxe novamente a questão da construção do desenho no espaço semântico que existe entre quem desenha e quem observa o desenho. O desenho da cadeira existiu, eu pude vê-lo, pude compreender suas nuances e gestos.
Contudo… E quem o observou? Considerou desenhado o objeto por conta dos gestos? Pôde acompanhar o que aconteceu ali, mesmo sem o vestígio da marca do desenho? Muito embora haja o registro do ato de desenhar, não houveram marcas posteriores – como classificar este tipo de desenho? Não pretendo estimular a categorização sistemática de tudo, mas sim evidenciar que não apenas o gesto, mas o registro do gesto de desenhar, é de extrema importância para a construção e para a troca no universo do desenho.

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[1] ALMEIDA, Paulo Luís (2008). Actos fingidos: aspectos da dimensão performativa do desenho (texto policopiado). Comunicação apresentada no ciclo Lições do Desenho. Lisboa: Espaços do Desenho.
[2] SCHECHNER, Richard (2002). Performance Studies: an Introduction. New York: Routledge.
[3] Idem. As expressões "twice-behaved behaviours" e "restored behaviours" aparecem em Schechner, 2002, p. 22.
[4] Kaprow, Allan (1986 [2003]). “Art Which Can’t Be Art”. In Essays on the Blurring of Art and Life. Expanded Edition. Los Angeles:University of California Press, pp. 219-222.
[5] Rosand, David (2002). Drawing Acts: Studies in graphic expression and representation. Cambridge: Cambridge University Press.
[6] Howell, Anthony. (2000). "Transference, substitution and reversal". In The Analysis of Performance Art: A guide to its theory and practice. 2ª edição. Amsterdam: OPA, pp. 135-147.

[7] Schechner, Richard. (1985). “Restoration of Behavior”. In Betwenn Theater and Anthropology. Philadephia: University of Pennsylvania Press, pp. 35-116
[8] Howell, Anthony. (2000). Idem [6].