16.10.16

Transferência-de-uso

João Gomes Gago


(1)

Martelar 



O obreiro martelava a parede.

Em curso estava a reparação de uma campainha à entrada de um prédio.

Ecoava um som sinuoso.

Eram ritmos que marcavam um compasso de tempo, feito de alternâncias tanto na forma como na vontade.

Martelar; parar para descansar; porquê parar? Continuar para terminar, de vez; voltar para ficar bem feito; martelar, martelar, martelar…

Ou seja, as pessoas que por ali transitavam, na cidade, naquela rua, naquele sitio, estavam sujeitas a reflectir aquela interferência nas suas deslocações, ou posteriormente noutras circunstâncias.

Do outro lado da rua, fui hospedeiro daquele batimento. Troquei o martelo por uma pedra, o prego por uma barra de carvão e contra a parede coloquei papel, onde imprimi aquele contágio.




(2) 

Sobrepor . substituir . encobrir . esmagar






Por debaixo, o chão, os bichos, os fungos, a parte húmida, a cobertura, o refúgio, a paralisação.

Não se vê como é por debaixo.

Aqui, embrulho-me com um tronco, pesado, tombado, quase enraizado ao chão novamente. Pesar o corpo do tronco no meu próprio corpo, a tentativa imperfeita de coexistência. 

Pelo menos, respeitando aquilo que é, um peso sobre outro peso por cima do chão, desvinculo-me da estrutura física, pois não só me sinto esmagado mas também aposentado da minha condição, como o tronco, em morte parcial. 




(3)

Destacar . acrescentar






Sem procurar contrariar a forma tronco-outrora-árvore, faço uso de variantes da mesma, como o papel que realça pequenas saliências-outrora-ramos e um “a mais” pequeno tronco, disposto na diagonal como um escadote improvisado. 

A forma que era já antes um elemento bastante presente no espaço, foi intuitivamente intervencionada, retocada, usada como suporte durante um curto espaço de tempo. O vento fez cair as “folhas” e o pequeno tronco foi novamente arrastado para o lugar anterior, pois as ruínas de uma ideologia devem permanecer testemunhas, invioláveis. Um desenho.