3.2.17

E se ninguém soubesse por onde circulamos?


ANDRÉ CEPEDA
DA SÉRIE BAIRRO DE SÃO VICTOR, PORTO
IMPRESSÃO A JACTO DE TINTA
ED. 1/1
COL. FUNDAÇÃO DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA, PORTO


Um dia, encontrei, na exposição Conversas: Arte portuguesa recente na colecção de Serralves, uma casa do bairro de São Victor, fotografada por André Cepeda. A série de fotografias da qual faz parte resulta "de uma encomenda efectuada no âmbito da exposição «Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-76» (...) O Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL) desenvolveu no período pós-revolucionário português projectos de habitação social que se fundamentavam na participação activa das comunidades para as quais eram construídos", li na respectiva legenda. Toda essa informação perdeu importância em relação à importância que ganhou o reconhecimento de que o número afixado em cima da porta da casa fotografada era o mesmo número que o número da porta de casa dos meus pais: 68. “Quanto maior importância biológica tem um objecto para nós, mais nos sintonizaremos para reconhecê-lo, e, por isso, mais tolerante será o nosso canône de correspondência formal” (GOMBRICH, 1988). Foi a equivalência desses dois números que fez com que não esquecesse o número registado na fotografia. Talvez tenha sido essa a única razão que me fez reparar nele. Ao caminhar, num movimento automatizado, com origem e fim previstos, foram raras as vezes em que reparei em número de porta algum. Na rua, nunca houvera reparado em nenhuma porta com o mesmo número da porta de minha casa.

O trabalho desenvolvido começa com uma instrução, que sabia impossível de cumprir... procurar o meu lar. O número da porta da casa dos meus pais, da casa onde cresci, da casa a que chamo lar. Decidi ir em busca de outras portas às quais tenham sido também atribuído esse número. Sabia que nunca encontraria a porta em que desejava bater, e em nenhuma bati. Nenhuma das portas encontradas poderia representar a porta de minha casa, “la representación no depende de semejanzas formales, más allá de los requerimientos mínimos de la función” (GOMBRICH, 1988). Mais do que isso, sabia que, se batesse e mas abrissem, quem estaria do outro lado não seriam os meus pais. Sabia que não iria ouvir “A porta da nossa casa está sempre aberta para ti”.




   








O tempo que a distância para poder ver a minha porta implicaria foi diminuído: em poucos minutos pude observá-la no ecrã do meu computador. Mas nela não consegui entrar. Poderia ter recorrido ao Google Maps para procurar tantas outras portas com o mesmo número, derivando sem tirar os pés do chão. Decidi deslocar-me com os pés, não no chão, mas nos pedais de uma bicicleta, ao longo do espaço que seria, dessa forma, possível percorrer. Andei à deriva, numa cidade cujas ruas e portas conheço agora de outra forma. Os situacionistas, definem o conceito de derivé como “um modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: uma técnica de passagem transitória através de vários ambientes” (STILES e PETER, 2006) ou, segundo Hans Ulrich Olbrist “mais do que um movimento espacial-temporal através do território urbano, é um movimento através dos espaços da imaginação por ordem a aterrar numa invenção de realidade” (OLBRIST, 2014).









“Em qualquer caso, o campo espacial é antes de tudo função das bases de partida constituídas, para os sujeitos isolados, pelo seu domicílio” (DEBORD, 1958). A casa onde vivo, quando estou no Porto, foi o ponto de partida e de chegada dos diferentes percursos realizados, feitos mesmo sabendo que não encontraria o lugar que procurei. Cinco vezes sai dela, percorrendo diferentes rotas por diferentes partes da cidade. E cinco vezes voltei. “A cidade proporciona a ordem e a organização que automaticamente ligam corpos que de outra forma permaneceriam distantes.” (GROSZ, 2003). Podem as pessoas com as quais me cruzei ser consideradas a audência inicial desta performance? “Sendo que não houve audiência para a performance ao vivo e o evento não foi enquadrado como uma performance para qualquer audiência acidental que possa ter estado presente (…) é somente através da documentação que as acções (...) são enquadradas como exposição e suspensas do [seu] ambiente contextual” (AUSLANDER, 2006), escreve Philip Auslander acerca de Photo-Piece, de Vito Acconci. Nenhuma dessas pessoas acompanhou a minha deriva na totalidade. Apenas eu percorri estas ruas, nesta ordem. Talvez nunca ninguém fará ou terá feito este percurso antes. 

A documentação desta performance é um mapa circular. O formato circular do mapa sugere: a ideia de circuito; a rotação das rodas da bicicleta com a qual derivei; a rotação do próprio mundo; a possibilidade de orientar o mapa de acordo com a nossa própria orientação em relação aos pontos cardeais, ao contrário do que acontece com as imagens convencionais, cuja posição é fixa. Neste mapa, não existem nomes de ruas ou números de portas. O percurso, o desenhar com o corpo no espaço, como todos os outros fluxos impossíveis de fixar, não foi registado no mapa, não pode ser através dele reconstituído. Sugere-se, assim, a invisibilidade com a qual aconteceu esta performance: apesar de muitas pessoas me terem visto, ninguém sabe, ao certo e na totalidade, por onde circulei.


CIRCULAR

2016
62 x 62 CM

COLA BRANCA, GRAFITE E ACRÍLICO SOBRE ALGODÃO





Descrição do Processo

Fez-se uso de um mapa impresso da cidade do Porto para registar os lugares correspondentes a cada porta encontrada ou a cada espaço onde, pela lógica da numeração de determinada rua, essas portas deveriam existir. Fez-se um círculo com centro no ponto equivalente à minha habitação, e raio no ponto equivalente à porta mais distante do ponto de partida. Esse mapa foi ampliado para uma maior escala, fazendo coincidir o diâmetro do círculo desenhado ao diâmetro das rodas da bicicleta que utilizei para me deslocar. Analisando os cinco percursos independentemente, uniram-se através de linhas os pontos correspondentes a cada porta, pela ordem em que foram encontradas. “Uma série de fluxos, energias, eventos, entidades ou espaços dispersos, unidos ou separados em alinhamentos mais ou menos temporários” (GROSZ, 2003). Os pontos correspondentes à primeira e à ultima porta encontradas em cada percurso foram unidos ao centro do mapa, desenhando cinco figuras geométricas irregulares. Transferiram-se esses registos para papel vegetal. A partir do centro do círculo e a passar no ponto correspondente ao meio do segmento de recta entre cada dois pontos/portas, traçaram-se raios de circunferência e arcos de circunferência concêntricas ao centro do mapa circular. Sessenta e oito secções, resultantes das intersecções dessas linhas rectas e curvas, foram preenchidas com as cores das portas ou espaços respectivos, tendo em conta a sua posição no mapa. As secções correspondentes aos espaços onde as portas se encontravam em falta foram preenchidas a grafite. Algumas portas eram inteiramente feitas de vidro: as secções correspondentes a essas portas foram preenchidas a verniz transparente. A área do mapa correspondente ao espaço por mim não percorrido foi preenchido a branco.


   


    






BIBLIOGRAFIA

AUSLANDER, Philip (2006). "The Performativity of Performance Documentation". PAJ: a Journal of Performance and Art. 84. Vol 28, September 2006.
BARTHES, Roland (1964 [1986]). "Retórica de la Imagen". In Lo obvio y lo obtuso: imágenes, gestos, voces. Traducción de C. Fernández Medrano. Barcelona: Paidós
DEBORD, Guy-Ernst (1958) “Teoria da Deriva” in Jacques, Paola Berenstein (2003) “Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade/ Internacional Situacionista”, Rio de Janeiro: Casa da Palavra disponível em https://teoriadoespacourbano.file s.wordpre ss.com/2013/03/apologia-da-deriva.pdf
GOMBRICH, E. H. (1951 [1988]). “Meditaciones sobre un caballo de juguete o Las raíces de la forma artística”. Meditaciones sobre un caballo de juguete y otros ensayos sobre la teoría del arte. Madrid: Editorial Debate.
GROSZ, Elizabeth (2003). "Corpos-Cidade" in Macedo, A.G.; Rainer, F. (2011). Género, Cultura Visual e Performance - Antologia Crítica. Famalicão: CEHUM/Húmus disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitst ream/1822/23585/1/Genero%20Cultura%20Visual %20Performance.pdf
REYNOLDS, Ann (2001) “Roberth Smithson: Mapping dislocations”, New York: James Cohan Gallery