2.2.17

Tempo, unidade e gesto. Trabalho Final

Na continuidade do meu projecto pessoal, dedico-me a pensar o desenho como acto performativo dentro da minha noção de prática  (a prática, dirá Patanjali, é um estado de vigilância permanente) - associada à minha prática de yoga -, e da necessária importância do tempo presente, pela forma como o agora pode ser olhado como um vazio, simultaneamente dentro do tempo e fora dele.
A partir destes conceitos, aproprio-me da imagem do meu corpo - o corpo que pratica -, percebendo que, ao desenhá-lo, construo uma figura mental, que contempla igualmente todos os pontos que um âsana (postura) deve cumprir para ser considerado completo: concentração, controlo da respiração, ausência de esforço, presença e imobilidade. Desenhar o corpo que pratica é, então, um acto de união, que me permite entrar no próprio vazio do tempo presente – a partir de um desfasamento em relação aos relógios objetivos -  de o gesto nascer do acordo total com o espaço e o tempo do mundo (Gil, 1996: 197-198). É através desse vazio que o artista é intimado a desaparecer ou a nascer para si próprio, e, com ele, o mundo, não sendo o seu desenho cópia, mas metamorfose desse mundo. (H. Maldiney, em “Esquisse d’une phénoménologie de l’art”, citado por Gil, 1996: 20)
A apropriação de um conceito do corpo para explicar o inexplicável pode ser entendido como a forma de enquadrar a ausência do Ser prometida pelo (e através) do corpo ( Phelan, 1998: 177) que Peggy Phelan discute na sua reflexão sobre a Ontologia da Performance. Neste texto, encontro novamente referências à importância do tempo presente, e da sua contradição inerente por diferir totalmente da morte e do nascimento, e ao mesmo tempo existir apenas por causa destes dois atos “originários”. (Phelan, 1998: 181)
No entanto, parece-me redutor limitar o desenho enquanto ato performativo ao espaço que este ocupa no tempo da sua atuação, uma vez que este existe também no depois; estamos nas estranhas fronteiras entre a evasão miraculosa do mundo fechado do possível, e uma introdução ao universo do feito (Valéry, 1937: 17): uma aproximação à valorização do tempo presente da performance, não restringindo a sua duração ao tempo que a ação decorre, mas também à sua definição dentro da via da desaparição, dentro do intervalo absoluto que  José Gil desenvolve, e da sua capacidade de ser, simultaneamente, fronteira e ponte entre dois (ou inúmeros) territórios distintos.
Assim, o desenho como ato performativo está dependente de um tempo de atuação, e é em simultâneo o resultado de um tempo de atuação. Da mesma forma que o fim do Yoga é um estado, que é fruto de uma prática que só acontece completamente quando esse estado é vivido integralmente, de forma abrangente no tempo e espaço de vida do praticante.
O desenho vem servir como testemunho; o desenho vem também servir de prática em si mesma. A presença que é registada através de desenhos que testemunham a prática em si mesma. Faço coincidir a textura do tempo com a minha própria materialidade, procurando manter presente a sensação que pertence ao domínio perceptivo do indizível. O desenho está em mim, enquanto gesto. Eu estou no desenho, enquanto presença. Como se perguntou Chris Moffet, e se estar presente (a si mesmo) é uma forma de movimento? Uma forma até de desenhar? (Moffet, 2011: 135) E, pergunto eu, um situar que se encontra com a prática, tempo presente, que constitui, ela mesma, um espaço fora do tempo?

O desenho enquanto acto performativo aproxima-se da prática: é um processo de natureza dual, que implica necessariamente uma transformação que se exterioriza, quer através do gesto, da transferência, da presença ou da ausência. O desenho, enquanto gesto - pela sua natureza -, pertence ao tempo presente, ao agora. A um agora que se repete, indefinidamente. A um agora que é fruto do finito e do irrepetível. O desenho desenrola-se entre eles, tempo e espaço, tempo presente e tempo concretizado, estendendo-se entre ciclos intermináveis de pontos particulares e únicos.



digitalizações de uma rede: os pontos no espaço e no tempo que se interligam, enquadrados no exercício de situar que a prática contempla















impressões de digitalizações sobrepostas: o confluir do fluxo do gesto, no tempo e no espaço, e o consequente vazio


digitalizações de movimentos da mão: a luz regista o gesto, aproximando-se à continuidade sensitiva que se conhece quando se pensa no movimento, mas não se vê quando o movimento é feito.


páginas de caderno: fotocópia de desenho a grafite sobre papel reciclado. Movimentos da sequência suryanamaskar



páginas de caderno: fotocópia de desenho a acrílico e marcador sobre papel reciclado.  Movimentos da sequência suryanamaskar
páginas de caderno: ponta fina sobre papel vegetal de uso culinário. Ardha Baddha Paschimottanasana sobre a direita
páginas de caderno: grafite sobre papel milimétrico. Ardha Baddha Paschimottanasana sobre a direita; marcador sobre papel de desenho. Imaginar ida, píngala, sushumna e outros nadis (=canais).


páginas de caderno: aguada e ponta fina sobre papel de aguarela. Postura marichyasana.


páginas de caderno: grafite sobre papel quadriculado, ponta fina sobre papel vegetal milimétrico. Pontos de acupuntura e nadis. Postura marichyasana.
página de caderno: grafite sobre papel reciclado. Posturmarichyasana.

página de caderno: lápis de cor, grafite e marcador sobre papel vegetal milimétrico. Eixos e inclinações em marichyasana.
páginas de caderno: fotocópia de grafite e marcador sobre papel reciclado, suryanamaskar; monotipia sobre papel quadriculado.

páginas de caderno: fotocópia de grafite e marcador sobre papel reciclado, suryanamaskar.
Monotipias sobre papel quadriculado.
Bibliografia
Almeida, Paulo Luís (2008). Actos fingidos: aspectos da dimensão performativa do desenho. Comunicação apresentada no ciclo Lições do Desenho. Lisboa: Espaços do Desenho.
Almeida, Paulo Luís (2013). “Desenho Protocolar: Inscrevendo a acção, a partir de Gunter Brus”. In PSIAX, 2, série II, Porto: FBAUP-I2ADS/FAUP/EAUM
Gil, José (1996). A imagem nua e as pequenas percepções - Estética e Metafenomenologia. Trad. de Miguel Serras Pereira. Relógio d’Agua Editores, Lisboa.
Moffett, Chris (2011). Drawing Bodies: A Kinaesthetics of Attention. In KANTROWITZ, Andrea; BREW, Angela; FAVA, Michelle (2011). Thinking Through Drawing: Practice into Knowledge. Proceedings of an interdisciplinary symposium on drawing, cognition and education. New York: Teachers College, Columbia University.
Peirce, Charles Sanders (2003). Semiótica. Tradução de J. Coelho Neto. 3a Edição. São Paulo: Perspectiva.
Phelan, Peggy (1996). The Ontology of Performance — representation without reproduction”. In Unmarked: the politics of performance. New York Routledge, pp. 146-166.
Rodrigues, Francisco de Assis: Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura. Lisboa, Imprensa Nacional, 1875.
Rosand, David (2000). Drawing Acts – Studies in Graphic Expression and Representation. Cambridge: Cambridge University Press
Valéry, Paul (1937): Première leçon du cours de poétique. Consultado a 11 de Janeiro em