30.3.20



Retórica do ato performativo - Ana Sofia Ribeiro







































A partir de uma sequência de três imagens é proposta uma narrativa. A primeira descreve a ação de escrever uma carta a alguém, observa-se uma mão, uma caneta de cor sanguínea e uma folha de papel escrita. Na segunda, o ato de lamber a margem com cola de um envelope sugere o fecho da carta escrita e o envio da mesma, nesta é apresentada uma língua exposta num rosto recortado e um envelope por fechar. Na terceira, a abertura da carta pela segunda personagem tem como intenção a leitura após o envio, onde o texto é visível de forma clara e se nota o escorrer da caligrafia a partir do acumular de saliva.  
Ao analisar as estratégias do pensamento pressupõe-se que a primeira imagem gera uma expectativa da segunda e que consequentemente formula o resultado da terceira. É nos espaços vazios de tempo da não ação que é construída a expectação do futuro, uma vez que, é ao fundamentar crenças ou previsões, em relações de causa e efeito com base na norma, que se gera a possibilidade de criação de desvio e de surpresa do que não é esperado. Assim para que o inesperado aconteça tem de existir obrigatoriamente uma falsa confiança de conhecimento da ação. Pensar a retórica do ato performativo envolve questionar o que é expectável e tornar visível o inesperado.
Dado isto, o gesto de escrever foca-se no campo autoral individualista, na partilha do espaço privado e na exploração da identidade a partir da linguagem, quer isto dizer, que as documentações diaristas referenciais são pertencentes do espaço quotidiano, de convenções e do grau zero. Assim como a própria caligrafia revela características singulares/irrepetíveis do ser e a linguagem é potencialmente contemplativa. No entanto, se a escrita tem como objetivo o diálogo, é apenas pela ação de envio e de retorno que o monólogo passa a conversa, proporcionando uma reflexão sobre um não destinatário.
A imagem que se segue procura ser a isotopia, o espaço em que o espectador confia na sua perceção para julgar e adivinhar a sequência da narrativa e que simultaneamente possibilita o ambiente necessário para que a rutura ocorra. A língua exibe o remetente e a sua capacidade para passar a mensagem, isto é, sendo em sim mesma uma projeção da interpretação da língua-gem, se explorado o seu sentido físico, como aquilo que ajuda a produzir palavras, questiona-se o papel da saliva. Assim, ainda que a língua demonstre a causa do efeito, é a saliva ignorada que se torna o constrangimento para o resultado esperado.
Por fim, o desvio surge através da não escrita, da anulação do significado, do cancelamento da legibilidade e da supressão da expectativa. O espaço vazio é agora protagonista e responde até que ponto a imagem anulada se torna mais presente que a imagem compreendida? O remetente desaparece e o destinatário permanece oculto. Cria-se um jogo de associações e reconstruções mentais daquilo que fora omitido e a escrita passa a desenho. Se por um lado a cor da caneta ligado a semântica de sangue remete para a ideia de algo que é líquido e vermelho, a própria tinta escorre da caneta para o papel através do gesto. A língua também ela vermelha relembra que a própria saliva é líquida e o ato de lamber se associa ao ato fluido, de verter, de pingar e de escorrer encontrados no desenho. O contraste do branco do papel com o tom de vermelho da pele resulta na terceira imagem como uma metáfora reminiscente de “crescer água na boca”, “meter água” ou “mudar da água para o vinho”.
Em suma, ainda que levantadas questões em volta da anulação do significado, é através de um distanciamento que a escrita/mensagem e a sua conceção mental passam ser antes vistas como uma transmutação que decorre no final da narrativa ou até mesmo uma renovação/camuflagem do inicial. Logo, o resultado ainda que omita o primeiro conteúdo, é proposta uma visão metamórfica da escrita para o desenho, passando este assim a ser o foco da narrativa. Estes temas não sendo novos e tendo já sido explorados por outros artistas foram influenciadas por Luis Buñuel em Un Chien Andalou, em termos de questionamento do grau zero, por Emma Hauck em [letter] Darling Come e Laura Makabresku em ‘That time you went back there that last time’ quanto aos processos semióticos, por Barry Flanagan em A Hole in the Sea, Tom Friedman e Rivane Neuenschwander nos gestos retóricos e Lewis Carroll em Rebus quanto à metáfora. É a partir deles que as três imagens foram pensadas, tendo como objetivo explorar os campos da retórica do ato performativo e criar uma composição fundamentada.