Retórica do ato performativo - Ana Sofia Ribeiro
A
partir de uma sequência de três imagens é proposta uma narrativa. A primeira
descreve a ação de escrever uma carta a alguém, observa-se uma mão, uma caneta de
cor sanguínea e uma folha de papel escrita. Na segunda, o ato de lamber a
margem com cola de um envelope sugere o fecho da carta escrita e o envio da
mesma, nesta é apresentada uma língua exposta num rosto recortado e um envelope
por fechar. Na terceira, a abertura da carta pela segunda personagem tem como
intenção a leitura após o envio, onde o texto é visível de forma clara e se
nota o escorrer da caligrafia a partir do acumular de saliva.
Ao
analisar as estratégias do pensamento pressupõe-se que a primeira imagem gera
uma expectativa da segunda e que consequentemente formula o resultado da
terceira. É nos espaços vazios de tempo da não ação que é construída a
expectação do futuro, uma vez que, é ao fundamentar crenças ou previsões, em
relações de causa e efeito com base na norma, que se gera a possibilidade de
criação de desvio e de surpresa do que não é esperado. Assim para que o
inesperado aconteça tem de existir obrigatoriamente uma falsa confiança de
conhecimento da ação. Pensar a retórica do ato performativo envolve questionar
o que é expectável e tornar visível o inesperado.
Dado
isto, o gesto de escrever foca-se no campo autoral individualista, na partilha do
espaço privado e na exploração da identidade a partir da linguagem, quer isto
dizer, que as documentações diaristas referenciais são pertencentes do
espaço quotidiano, de convenções e do grau zero. Assim como a própria
caligrafia revela características singulares/irrepetíveis do ser e a linguagem
é potencialmente contemplativa. No entanto, se a escrita tem como objetivo o
diálogo, é apenas pela ação de envio e de retorno que o monólogo passa a
conversa, proporcionando uma reflexão sobre um não destinatário.
A
imagem que se segue procura ser a isotopia, o espaço em que o espectador confia
na sua perceção para julgar e adivinhar a sequência da narrativa e que
simultaneamente possibilita o ambiente necessário para que a rutura ocorra. A
língua exibe o remetente e a sua capacidade para passar a mensagem, isto é,
sendo em sim mesma uma projeção da interpretação da língua-gem, se explorado o
seu sentido físico, como aquilo que ajuda a produzir palavras, questiona-se o
papel da saliva. Assim, ainda que a língua demonstre a causa do efeito, é a
saliva ignorada que se torna o constrangimento para o resultado esperado.
Por
fim, o desvio surge através da não escrita, da anulação do significado, do
cancelamento da legibilidade e da supressão da expectativa. O espaço vazio é
agora protagonista e responde até que ponto a imagem anulada se torna mais
presente que a imagem compreendida? O remetente desaparece e o destinatário
permanece oculto. Cria-se um jogo de associações e reconstruções mentais
daquilo que fora omitido e a escrita passa a desenho. Se por um lado a cor da
caneta ligado a semântica de sangue remete para a ideia de algo que é líquido e
vermelho, a própria tinta escorre da caneta para o papel através do gesto. A
língua também ela vermelha relembra que a própria saliva é líquida e o ato de
lamber se associa ao ato fluido, de verter, de pingar e de escorrer encontrados
no desenho. O contraste do branco do papel com o tom de vermelho da pele resulta
na terceira imagem como uma metáfora reminiscente de “crescer água na boca”, “meter
água” ou “mudar da água para o vinho”.
Em
suma, ainda que levantadas questões em volta da anulação do significado, é
através de um distanciamento que a escrita/mensagem e a sua conceção mental passam
ser antes vistas como uma transmutação que decorre no final da narrativa ou até
mesmo uma renovação/camuflagem do inicial. Logo, o resultado ainda que omita o
primeiro conteúdo, é proposta uma visão metamórfica da escrita para o desenho,
passando este assim a ser o foco da narrativa. Estes temas não sendo novos e tendo
já sido explorados por outros artistas foram influenciadas por Luis Buñuel em Un
Chien Andalou, em termos de questionamento do grau zero, por Emma Hauck em
[letter] Darling Come e Laura Makabresku em ‘That time you went back
there that last time’ quanto aos processos semióticos, por Barry Flanagan em
A Hole in the Sea, Tom Friedman e Rivane Neuenschwander nos gestos
retóricos e Lewis Carroll em Rebus quanto à metáfora. É a partir deles
que as três imagens foram pensadas, tendo como objetivo explorar os campos da retórica
do ato performativo e criar uma composição fundamentada.