O FIM ESTÁ PRÓXIMO:
Anúncio apocalíptico de boas novas
Felipe Vaz Luza
Como superar o mecanismo que torna a exploração do homem pelo homem possível? Como fomentar a tomada de consciência para a construção de uma sociabilidade reformulada por e para o proletariado a partir da performance como ato de presença?
A grande variedade de ilusões e fetiches disponíveis como mercadorias estão aí para que se desvie do facto de que todas as relações sociais são permeadas pela lógica hegemônica capitalista para reprodução e manutenção da mesma. A liberdade de escolha oferecida ao público é a de vender a sua força de trabalho para os que têm a disponibilidade e/ou interesse de explorá-la e a especial oportunidade de ser posicionado em um ou mais nichos de consumo, onde também o trabalhador/consumidor se torna uma mercadoria – onde quer que se vá vende-se e valoriza-se a própria imagem, uma conversa rende ou não, economiza-se tempo, produz-se arte – e até comunica-se acerca das relações sociais como mercadoria, a materializar uma cultura de controle de massas a partir das relações de consumo.
Segundo Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, em O Iluminismo como Mistificação das Massas (1947), a cultura de massas é uma "arte sem sonho produzida para o povo" (p. 9), "(a) cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança" (p. 5), que tem por modelo "a falsa identidade do universal e do particular" (p.5), a criar produtos e serviços culturais onde a sua "necessidade social" é o lucro de quem os vende. Um controle cultural planificador do raciocínio crítico é estabelecido diante das possibilidades de transformação.
Entende-se o pensar a partir de relações sociais e o que se pensa como uma resultante reflexiva das relações sociais em que se está inserido. Com intenção de instigar uma reflexão sobre as dinâmicas de consumo presentes na sociedade capitalista, a conectar com a afirmação da Peggy Phelan, em A Ontologia da Performance (1988), de que "(a) performance estorva os maquinismos suaves da representação reprodutiva necessários à circulação do capital" (p. 173), foi realizada uma intervenção performática ao longo da rua de Santa Catarina, maior referência de rua comercial da cidade do Porto, onde o performer assumiu um papel semelhante ao dos fundamentalistas religiosos, que saem às ruas a bradar a iminência do fim do mundo, mas, de outra forma, a transportar e a comunicar um anúncio apocalíptico de boas novas. Vestindo um papel cartão recortado de uma caixa de TV, com as frases, aplicadas com marcador, O FIM DO CAPITALISMO ESTÁ PRÓXIMO na parte da frente e THE END OF CAPITALISM IS NEAR na parte de trás, a trabalhar numa construção conceptual discursiva e imagética do que ainda não veio a ser, em oposição à inércia social e à indiferença, que favorecem ao modelo de exploração, e em favor da provocação de um exercício imaginativo e criativo na produção de novos mundos. Em outra camada, a performance também direciona sua crítica, de forma irônica, à extrema precarização do trabalho, ao anunciar o fim do modo de produção que possibilita a existência do serviço de homem-placa, performando uma metonímia deste tipo de trabalho. Segundo Phelan:
"Ao deslocarmo-nos da gramática das palavras para uma gramática do corpo, movemo-nos do universo da metáfora para o universo da metonímia; (...) Na performance, o corpo é uma metonímia do sujeito, da personagem, da voz, da «presença». Mas na plenitude desta sua aparente visibilidade e disponibilidade, o performer de facto desaparece e representa algo outro – dança, movimento, som, personagem, «arte»." (Phelan, Peggy, 1988, p. 177)
Buscando uma reconciliação com o pensamento crítico como ferramenta de libertação social e cultural, a fim de transcender à mera reprodução de existências em favor de uma produção de modos de vida autênticos, pretendeu-se transportar uma reflexão negativa em relação à sociedade hegemónica vigente, a partir do desenvolvimento de uma mercadoria em que o objeto de consumo é o anticapitalismo, uma dialética de negação da negação. O que se nega é ao espetáculo, onde as imagens que mediam as relações sociais são uma distorção da realidade em benefício da dominação. De acordo com Guy Debord (1967), "a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre como a negação do visível da vida; como negação da vida que se tornou visível" (A separação consumada, Tese 10).
A partir de outra perspectiva crítica, Phelan declara que "(a) crença de que a percepção pode ser infinitamente renovada é uma das forças fundamentais por trás de todas as artes visuais" (1988, p. 184). Em complemento à performance, acreditando numa renovação perceptiva e a pensar numa participação colaborativa dos espectadores como um movimento de diálogo para desenhar uma construção social coletiva, foi elaborado o Molotov Sticker, um autocolante contendo a ilustração de um coquetel molotov, inspirado na estética da Pop Art, a utilizar cores vivas e um elemento da cultura de consumo (garrafa icónica da Coca Cola). Em uma reprodução de resistência gráfica, os Molotov Stickers têm a proposta de convidar as pessoas ao enfrentamento da dominação sistêmica, ao disputar e intervir no espaço público com uma agressão simbólica desde a aplicação do autocolante onde quer que residam as suas inquietações perante o capitalismo.
A compreender a história como um exercício social, que preserva ou transforma a conjuntura social e política existentes na concretude material das relações económicas e, que "(a) indústria cultural tem a tendência de se converter em um conjunto de protocolos, e, por essa mesma razão, de se tornar o irrefutável profeta do existente" (Adorno e Horkheimer, 1947, p. 27), apropria-se da afirmação de Peggy Phelan que "(estamos) sempre a oferecer aquilo que não temos porque aquilo que queremos é aquilo que não temos" (1988, p.188) para oferecer performaticamente, como um profeta do inexistente, o raiar do fim de mais um modo de produção exploratório da humanidade, mas agora, a partir de um desenho coletivo de transformação.
Durante o percurso interventivo foi possível observar parte da reação do público que lá estavam a circular com sacos de compras recém realizadas, a tomar um café em alguma pastelaria, a trabalhar ou apenas de passagem. Muitos interagiram de forma a registar o ato com suas câmeras e seus telemóveis, outros agradeceram pelos Molotov Stickers e consentiram ao posicionamento, a expressar um "vamos a isto!", outrem afastaram-se a recolher as mãos diante da oferta dos autocolantes e alguns até se riam com um certo ar de deboche e descrédito em relação à mensagem apresentada, um destes espectadores chegou a questionar o anúncio a perguntar se era mesmo o fim do mundo. Nenhuma novidade neste último ponto, já que, segundo Debord, "(o) espetáculo é a conservação da inconsciência na mudança prática nas condições de existência" (A separação consumada, Tese 25). As interações de destaque ficam por conta de duas ocorrências específicas: a primeira foi a reação de um artista de rua, um homem-estátua, que também estava a performar na rua de Santa Catarina, quando, ao receber um Molotov Sticker, respondeu com a frase "obrigado, vai ficar fixe no frigorífico", a demonstrar entusiasmo pelo sticker e indiferença diante de um personagem que anuncia o fim do capitalismo enquanto distribui coquetéis molotov pela rua; e a segunda fica por efeito de um sujeito, a vestir roupas e acessórios de marcas representativas de grande status económico, que, ao se deparar com a oferta gratuita de um autocolante, pouco reparou de onde ou de quem partia o regalo e respondeu de forma automática "fica para a próxima", como se o proposto aguardasse algum retorno financeiro, quando parte do exercício performático era de cunho crítico a esta exata dinâmica social, em que uns, por não terem uma mínima condição de sobrevivência digna, necessitam pedir auxílio monetário a outros.
As dinâmicas de reprodução da sociabilidade capitalista engendradas por uma cultura de massa alienadora das reais condições de existência tendem a aprofundar-se no imagético popular, "(uma) vez que a encarnação de todas as tendências da indústria cultural na carne e no sangue do público se faz mediante o processo social inteiro, a sobrevivência do mercado, neste setor, opera no sentido de intensificar aquelas tendências" (Adorno e Horkheimer, 1947, p. 18). Assim, entende-se a premência por vozes e corpos dissonantes em reação ao ritmo constante e acentuado da produção e reprodução cultural mantenedoras da ordem vigente. Peggy Phelan atesta que "(a) performance é a tentativa de valorizar aquilo que é não reprodutivo, não metafórico" (1988, p. 179), cuja vida "dá-se no presente" (p. 171), a enaltecer um movimento que se apresenta agora, na presença de outros corpos, a implicar o real. De acordo com Phelan "a performance ao vivo mergulha na visibilidade (...) e desaparece na memória, no reino da invisibilidade e do inconsciente, onde escapa à regulamentação e ao controlo" (p. 173), e é, a partir deste inconsciente, longe da supervisão espetacular, que espera-se um renovar da percepção, uma faísca a transformar o público espectador, que ora apenas contempla, assiste e aguarda o próximo espetáculo da indústria cultural, a entreter-se e a retirar-se da realidade conturbada e sofrida, em ator do processo de transformação da própria realidade doravante uma discussão e a bater-se com os reais problemas da sociedade.
A reprodução de meras existências paralisa o desejo de mudança através do desenvolvimento e manutenção de um obstáculo cultural e psicológico alienante, que impede o espectador de perceber e lutar por sua realidade material, e são nesses âmbitos que a arte da performance efetua a sua disputa discursiva e imagética, na decodificação da realidade por meio de um ato de presença, de interação, de colaboração e de assimilação, a desenhar novas perspectivas sociais.
Bibliografia
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, Max. [1947]. (2002). O Iluminismo como Mistificação das Massas. In: Adorno, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra.
DEBORD, Guy. [1992]. (2016). A Sociedade do Espetáculo. [Kindle] Rio de Janeiro: Contraponto Editora LTDA. Disponível em: http://www.amazon.com
PHELAN, Peggy. (1988) A Ontologia da Performance: representação sem reprodução (pp. 171-191). Lisboa: Edições Cosmos.