Trabalho Final
Tendo em conta o meu projeto
pessoal deste ano letivo, penso a refinaria de Leça, a Petrogal, que surge como
foco de um trabalho gerido visualmente pela técnica de impressão e pela
fotografia. A partir da situação atual que a refinaria atravessa, ou seja, o
seu encerramento, descontaminação e consequente desmantelamento é possível
construír uma narrativa que tira partido destes acontecimentos. Tratando-se de
uma zona industrial, questiona-se também o papel da indústria na sociedade,
seja o seu afastamento da cidade, a poluição ou ainda a arquitetura industrial.
Para além disto, procura-se estabalecer uma relação também com o conceito de
ruína e locais abandonados. Deste modo, durante este
semestre dei continuação a este projeto pessoal. Seguindo um processo
deambulatório aproveitei para documentar viagens de bicicleta tentando
aproximar-me o mais possível em torno do perímetro.
No contexto
de Desenho e Performatividade, parti de uma série de ações como o lixar,
arranhar, arrancar de modo a construir uma narrativa performativa. O documento
da performance serviu como elemento si próprio manifestando a sua linha de
pensamento. Confesso que tenho uma relação racional, mas maioritariamente
emocional com estes trabalhos que realizei e por essa razão, num contexto
perfomativo este conjunto de atos de natureza violento acabaram por integrar um
contexto inesperado: o suplício. Estabelece-se uma relação com o texto The Analysis of Performance Art de
Anthony Howell relativo à sua noção de humanização de um objeto:
«...com um
intérprete a substituir um objeto - por exemplo, em Homenagem a Morandi pelo
Teatro dos Erros, um intérprete alto com um casaco de armazém castanho torna-se
um guarda-roupa, enquanto outros "ficam em pé" para cadeiras e malas.
Talvez esta seja mais propriamente a objetivação do intérprete? Do mesmo modo,
porém, um objeto pode ser investido com qualidades humanas.» (1999, p.141, 142)[1]
Com isto, o desenho inseriu-se neste projeto com a perspetiva de apagar e danificar a impressão através da lixa e da fita cola. Este processo baseou-se no ato de Robert Rauschenberg ao apagar o desenho de Willem de Kooning em “Erased de Kooning Drawing” (1953).
Com isto,
Gunther Knipp e William Kentridge, tal como Rauschenberg são referências
significativas que surgiram para complementar este projeto no campo do desenho.
Kentridge é um artista, que no seu estilo monocromático, dá atenção não só à paisagem
como também às suas figuras ou personagens. O seu uso da mancha é inconfundível
e de algumas das suas paisagens transmite-se sensação de desolação e tragédia o
que acaba por se manifestar em parte também com Gunther Knipp. Curiosamente,
Knipp utilizou também a lixa nos seus desenhos, no entanto, como ferramenta de
textura. Ao contrário de Kentridge, as suas imagens exprimem apenas paisagens.
No seu trabalho das décadas de sessenta e setenta verifica-se também a
desolação, mas principalmente a ruína, ou seja, para além disto identifica-se
um padrão entre a escolha das paisagens: campos, ruas, cercas, barricadas. Esta
escolha específica de lugares acaba por se relacionar também com a noção de
não-lugar de Marc Augé. Segundo Augé a determinação de um não-lugar é
subjetiva, no entanto, a um nível sensacional a identificação de um não-lugar é
quase imediata. O que o autor refere como “supermodernidade” no seu livro “Não
Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade” surge como origem
do não-lugar. Essencialmente, Augé aponta o não-lugar como um espaço de
transição como um centro comercial, aeroporto ou estação de metro. A
globalização sendo o motor que propaga a supermodernidade e o não-lugar
consequência deste processo:
«Se um lugar
pode ser definido como relacional, histórico e preocupado com a identidade,
então um espaço que não pode ser definido como relacional, ou histórico, ou
preocupado com a identidade será um não-lugar. A hipótese aqui avançada é que a
supermodernidade produz não-lugares, ou seja, espaços que não são eles próprios
lugares antropológicos e que, ao contrário da modernidade baudelaireana, não
integram os lugares anteriores...» (1995, p.77)[2]
A partir
desta análise da ligação entre a antropologia e lugares, podemos pensar a ruína
como o lado inverso desta moeda. Estabelece-se, com isto, a base para estudar e
fundamentar a pesquisa não só das paisagens de Knipp, mas também a
circunstância da Petrogal.
Posto isto, o
processo de intervenção pela lixa torna-se tanto uma ação do desenho, como a
criação de uma ruína. O apagar é, de facto, algo inerente ao desenho visto que
este aspeto também se verifica no desenho apagado por Rauschenberg. Para além
disso, apagar, corrigir, destruir, esconder são todas características presentes
no desenho, não necessariamente inevitáveis, contudo são refletivas da nossa
natureza como ser humano. A ruína, deste modo, é então, uma metáfora
consequente deste processo. Ao apagar a imagem de impressão litográfica procuro
o dano, a destruição. O uso da lixa não é de todo a ferramenta de desenho
convencional; produz uma determinada marca no desenho tão intensa que fica
entre o restauro do branco do papel e a sua destruição total. Em suma, o
conceito de ruína intensfica-se, tendo em conta as imagens em questão, o contexto
do tema e a narrativa que pretendo construir.
Contrastando
com a ruína a partir do desenvolvimento da impressão litográfica surge o conceito
de “nevoeiro”, notavelmente pelas características e sensações da própria
imagem. Essencialmente, o “nevoeiro” manifesta-se no campo da prática como o
teor da própria impressão, no entanto, surge também de um ponto de vista
teórico quando se atribui esse significado e cria-se a narrativa concetual.
No
seguimento do desenvolvimento desta narrativa penso em outros conceitos
visualmente entendidos como a decomposição, o ruído ou o “fantasma”. Para além
de que a sua história permanece evidenciada por estes aspetos. Como tal, o
nevoeiro poderá ser entendido como uma amálgama destes conceitos, visto que o
nevoeiro é algo que cria uma barreira, que esconde e obscura.
Torna-se
relevante, assim, mencionar o “nevoeiro” tendo em conta o processo da lixa,
visto que foi algo que eu procurei reutilizar da temática da impressão. Aliás,
procurei a artificialidade, ou seja, de acelerar e intensificar o processo que outrora é natural ao processo de impressão.
Concluíndo
com o conceito de ruína, podemos pensar em fragmentos, artifactos ou
resquícios. Isto verificou-se praticamente quando pelo processo da lixa foi
libertado pó de papel. Este pó simultaneamente tornou-se um elemento essencial
de experienciar como também algo fulcral para a leitura deste trabalho.
Denominei o contentor deste pó “Desenho”, já que coloca vários problemas em
questão; primeiramente porque problematiza a bidimensionalidade do desenho em
algo tridimensional e sensacional (nomeadamente o tato e o olfato), mas também
porque é um fragmento do desenho tal como pó de carvão ou grafite o seria.
Augé, M.
(1995). Não Lugares: Introdução a uma
antropologia da supermodernidade.
Azevedo, A. F., Vaz-Pinheiro, G., Pereira, F. J., Folgado, D.,
Abreu, J. G., Aguiar, J. (2001) Margens e
Confluências: Um olhar contemporâneo sobre as artes.
Beuys, J.
(2011). Cada Homem um Artista (2ª ed.).
Clarke, H., Kivland, S. (2017). The Lost Diagrams of Walter Benjamin.
Fernandez,
A., De La Nuez, I., Daniel, M. (2021) Memorias
Pendientes.
Sicard, M.
(1998). A Fábrica do Olhar.
[1] Tradução livre. No original: with a
performer substituted for an object - for instance, in Homage to Morandi by The
Theatre of Mistakes, a tall performer in a brown warehouse coat becomes a wardrobe
while others 'stand in' for chairs and suitcases. Perhaps this is more properly
the objectification of the performer? Equally, though, an object may be
invested with human qualities. (1999, p.141, 142)
[2] Tradução livre. No original: “If a
place can be defined as relational, historical and concerned with identity,
then a space which cannot be defined as relational, or historical, or concerned
with identity will be a non-place. The hypothesis advanced here is that
supermodernity produces non-places, meaning spaces which are not themselves
anthropological places and which, unlike Baudelairean modernity, do not
integrate the earlier places...” (1995, p.77)