10.11.22

Retórica do ato performativo

 

 Autorrepresentação

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O ato de auto-representar em si já é um ato de exposição, mas esta exploração que toca fundo fez me recordar momentos do passado e reconstruir formas de pensar que, ao fim ao cabo, faziam sentido. Ou se não faziam sentido ao observador que este viesse a criar o sentido artístico na performance utilizando o contexto da situação construída. Este ensaio de autorrepresentação foi um exercício de interiorização do conhecer do "eu", das transformações em pessoa e como isso é colocado em vista.

O ponto de partida aqui é o grau-zero. Corpo nu, corpo que tenho, corpo desprotegido - grau-zero. Este elemento não cria ambiguidades - é o que está definido como o que é observado, que neste caso trata-se do meu corpo desnudo. Aqui cria-se a ideia de que eu sou quem o observador vê, independentemente dos julgamentos e conclusões que uma pessoa possa tirar da minha aparência, o corpo é a minha identidade.



O grau percebido e concebido encaixam no mesmo plano, ou seja, no local em que o meu corpo se encontra, podendo até mesmo dizer que temos uma interpenetração - "in praesentia conjunto, quando os dois níveis coincidem no mesmo lugar, substituindo-se parcialmente". Estou situada na casa-de-banho despida, e, virando a minha atenção para a banheira atrás de mim, cria-se a expectativa de que se trata de um momento de banho, dum lavar do corpo. Aquilo que se observa e que se percebe vai ao mesmo encontro (isotopia).



Cria-se o desvio com a presença do guarda-chuva que é a nossa alotopia, o elemento disruptivo. O guarda-chuva que é usado em espaços exteriores para nos proteger da chuva ou dos raios solares fortes, aqui está a ser usado numa situação que poderá ser considerada estranha. Abrir o guarda-chuva em espaços interiores leva à superstição antiga que declara o ato como má sorte, que origina azar. Além disso, se a intenção aqui era de me lavar, de tomar um duche, porquê a presença do guarda-chuva, que nos protege da queda de água? Gera-se aqui uma operação retórica de relacionar instâncias diferentes e tentar fazer sentido a partir delas.
 
Ninguém sabe dizer, ao certo, de onde veio a superstição, apesar das várias especulações, porém, aqui o guarda-chuva representa uma barreira que vai para além da utilidade esperada do objecto em si. Simboliza a proteção enorme que recebi como criança que me ensinou a virar para a segurança, porque o desconhecido é perigo. Refere também o escudo que criei para me proteger de sofrimento de relações pessoais, a morte da minha mãe que me afetou profundamente, sendo a presença dos guarda-chuvas em funerais umas das especulações da superstição. Ao mesmo tempo, representa o sufoco da gaiola criada, do querer libertar e não conseguir (em especial dos anos vividos durante a pandemia em Macau). 





Debaixo do guarda-chuva encontro-me bem. 
Debaixo do guarda-chuva encontro-me segura. 

Outro desvio presente encontra-se na água preta (tingida com tinta da China). Aqui o preto alude ao simbolismo que representa na maioria dos países - o escuro, desconhecido e medonho. O guarda-chuva, até mesmo com o seu padrão interior cria a perceção de proteção da "chuva preta".
 

O protesto ocorre quando afinal o que me define como "eu", não é o pressuposto nem imposto. Desde pequena que me associei ao "arriscar" e por muitos, nas redes sociais, conhecem-me por "arriscas". O medo da minha experiência de vida e aquilo que me era esperado não me prende. Faz-se a ligação ao guarda-chuva que é um elemento muito presente em protestos, e aqui eu o utilizo como forma de me quebrar não só da expectativa do observador mas também de quem e daquilo que tentou formar as barreiras. 




Colocando o guarda-chuva de parte, sigo para a expectativa do banho na água de cor preta. Toco na água para como alguém que a avalia (test the waters). O "desconhecido" não é razão para me distanciar e arrisco em aventuras do novo que ainda está por descobrir. Como na minha situação atual em que me encontro, largando a segurança e estabilidade que tinha em Macau mas que também era uma prisão em que pouco em nenhum controlo tinha do meu futuro. Agora estou num país diferente, a tentar seguir rumos desconhecidos, a sair da minha zona de conforto, com incertezas e receios mas a utilizar os conhecimentos que aprendo da experiência para crescer e melhorar a minha qualidade de vida. Isto é um exemplo atual mas remete também a muitas situações passadas.
 
Como o ato de limpar, aqui as mãos tingidas pintam o corpo, e em vez de o lavar decora-o, deixando as marcas. A vida é decorada com estas novas experiências não desprezando os riscos, mas aprendendo... O ato projetado abre portas para a retórica, provocando o pensamento perante os conflitos, construindo-se então sentidos do processo artístico. 




Saio do banho como quem renasceu.

Preparada para um novo futuro.