TRANSFERÊNCIA DE USO
| Maria Inês Gomes
Partindo de
uma lista de verbos, que descrevam ações do corpo ou de manutenção do mesmo, e
de uma segunda lista que compila ações/verbos ligados ao léxico do desenho, foi
proposta a realização de três exercícios que explorassem a descontextualização
e transferência desses mesmo gestos para novos contextos/campos performativos.
Exercício 1
Transferência-de-uso
de uma ação para os suportes e processos do desenho
Num primeiro
momento, elegi o verbo lavar, como gesto/ação para transferir do campo
quotidiano, para o campo do desenho. O ato de lavar, é geralmente ligado ao ato
de cuidar e manter um espaço/um corpo, mas se pensarmos no ato literal de lavar
um desenho, essa ação remeter-nos-ia para a sua destruição/degradação. Contudo,
ao utilizar pigmento e um desperdício, e proceder ao ato de lavar uma folha de
papel com o mesmo, produz-se um desenho/registo dessa ação. Esse ato repetido e
frenético, gradualmente, foi ensopando e sujando a folha e produzindo ruído na
mesma, sendo de seguida colocada num estendal improvisado para secar, como se
de uma toalha se tratasse. Assim, cria-se uma antítese entre contextos,
tornando o ato de lavar algo, uma ação de acrescento, e não de retiro; algo que
não limpa ou purifica, mas sim que suja e contamina.
Exercício 2
Transferências entre duas ações
de campos performativos distintos
Num segundo
momento, foram escolhidos dois verbos não relacionados, um pertencente ao campo
da manutenção do corpo – hidratar a pele – e um segundo pertencente ao campo da
manutenção do espaço – engomar. Através da conjugação da ação de polos opostos,
cria-se uma certa contradição para com cada verbo escolhido. O ato de passar
creme no corpo, remete-nos para o ato de cuidar e preservar, bem como o ato de
engomar, encaminha-nos num sentido de cuidar e preservar algo a um estado
imaculado, contudo ao passar a ferro um corpo não o estaríamos a preservar, mas
sim, neste caso, a queimar. Esta ação, pode também ser lida como uma busca
focada pelo preservar da beleza, pois subanalisando a questão, genericamente a
ação de preservar o corpo é muito vendida e publicitada à figura da mulher (ex:
cremes para as rugas), bem como o passar a ferro é um ato doméstico, que
conservadoramente, é também muito associado à figura da mulher-cuidadora/ fada
do lar. Assim, ao realizar uma ação de cuidado/preservação com um objeto que a
danificaria, pode-nos levar a refletir sobre a figura de cuidadora/ faz-tudo e
como esta se pode prejudicar ao tentar cuidar de tudo.
Exercício 3
Redireccionamento de um ato
associado aos meios do desenho
Num último
momento, devíamos pegar num verbo/ ação conotado ao desenho e transpô-lo para
um espaço físico fora do papel. Escolhi então o ato de gravar, neste caso com
recurso ao buril, e transpus esse gesto para uma zona de terra do jardim da
faculdade. Criou-se assim um ciclo de criação de linhas, como quem escava
canteiros na terra, e da sua subsequente diluição, por meio da ação de limpar a
sujidade que vai surgindo ao gravar algo. Num gesto repetido, a ação cria e
apaga o próprio registo do gesto, deixando o local no seu estado original, pré
intervenção. Um pormenor engraçado, registado no vídeo da ação, foi o
surgimento de um fio de plástico branco à medida que ia gravando a terra. Este
fio ia-se desenterrando e surgia do solo, como a materialização acidental da
linha que se apagava a si própria.