Segunda Pele
Filipa Domingues
Abstract
Vivemos numa época em que o corpo é elevado ao extremo e problematizado como nunca. Questionam-se os padrões impostos socialmente, enquanto se normaliza a cedência aos mesmos. A necessidade de transformação física e psicológica tem se revelado numa preocupação da sociedade atual.
Nesta série de
fotografias, rostos de jovens são deformados, individualmente e em composições.
A transformação é provocada pelos próprios modelos, ou seja, uma auto deformação
e possível asfixia. Nota-se uma estranha calma e plenitude das suas expressões
enquanto são envolvidos em película transparente ou esmagados contra o vidro, e
desta forma, é proporcionada uma sensação contrastante entre a imagem e o
observador, pela imprevisibilidade da ação. A dimensão psicológica do ser
humano é muitas vezes exteriorizada através de gestos codificados e revela-se
no estado físico de cada individuo.
A pelicula surge
como uma segunda pele que envolve, deforma, protege e sufoca, como uma metáfora
do quotidiano, mas é também uma analogia à dor e desconforto que o ser humano
está suscetível. O rosto é o nosso cartão de identidade, sujeito ás diferentes
leituras de quem nos observa. É possível manipulá-lo, como instrumento de
proteção, para que o estado emocional não seja percetível.
Este projeto
evoca conceitos como o autorretrato/autorrepresentação e retórica do ato
performativo, e atos fingidos, que apelam à perceção do grau zero da figura
representada, sem a terceira pele e controlo exterior, e contribuem na
construção da ação.
Palavras-chave: corpo, deformação, sufoco, autoconhecimento, expressão
Introdução
A transformação
é o conceito chave para o desenvolvimento deste projeto. Através do uso da
pelicula é possível criar diferentes formas no rosto humano, que podem seguir o
caminho da transformação física, como do sufoco psicológico, ou como uma segunda
pele que une os sujeitos da ação. A ideia de transformação de um corpo abrange
uma grande variedade de questões socias relativas ao preconceito, shaming,
questões de género, pensamento patriarcal e pressão social exercida sobre o ser
humano, provocada pela dificuldade de encaixe nos padrões pré-concebidos. Mais
uma vez, surge a importância do corpo como transmissor de sensações, relativas
ao próprio individuo e a quem o rodeia.
O uso do autorretrato,
presente nos elementos fotografados, é um confronto entre o que o sujeito acredita
e o que espectador irá sentir, de forma a estimular ambos pensamentos através
da relação entre a artista, obra e público. Utiliza a sua imagem como bandeira
de representatividade do seu tema de trabalho, normalizando corpos pintados.
O rosto é o
nosso cartão de identidade, sujeito a diferentes leituras de quem nos observa. É
possível manipulá-lo, como instrumento de proteção quando não se quer expor o
estado emocional.
Artistas como Ana
Mendieta e Jenny Saville debruçaram-se sobre este tema. Saville colaborou com o fotógrafo Glen Luchford para
produzir uma série de fotografias intitulada “Closed Contact” (1995-6),
no qual foi fotografada de baixo para cima, deitada numa placa de acrílico
transparente, onde foi capturado o seu corpo empurrado, esticado e esmagado até
ao extremo. Desta forma, a artista também se transformou numa forma escultural que
pode ser modelada e refeita.
Figura 1. Jenny
Saville & Glen Luchford, Closed Contact #13, impressão c-print em acrílico,
152,4 x 304,8 cm, 1995-96
Na sua prática
como artista feminista e pintora de carne, Saville chama a atenção para um modelo
da perfeição, aquele que reflete essencialmente os desejos masculinos que são continuamente
projetados nas mulheres. Apresenta a sua própria perceção e reivindica a conceção
feminista de beleza, dizendo não considerar errado o ideal tradicional, apenas
que o que as mulheres pensam ser belo pode variar, e não tem necessariamente de
pertencer a um só padrão, pois existe beleza no individualismo e, relativamente
à arte, na própria pintura, até uma verruga ou uma cicatriz podem ser
consideradas bonitas quando são pintadas.
Durante a época
de 1970 e 1980, Ana Mendieta trouxe uma abordagem íntima e feminista para arte relacionada
com a Terra. Nas suas performances, fotografias, filmes, esculturas (…) a artista explorou as conexões místicas e
emocionais entre o seu corpo e a natureza, por exemplo na série “Silhueta”
(1973–80) de performances de “corpo-terra”, por exemplo.
Em obras como Sem
Título (Body on Glass Imprinted), Mendieta pressionou um pedaço de
vidro contra o rosto e diferentes áreas de seu corpo nu, numa série de 36 imagens.
Mais tarde, selecionou treze imagens do seu rosto para serem impressas como
fotografias a preto e branco, incluindo este trabalho. A visão assustadoramente
próxima das feições deformadas da artista transmite uma sensação de alienação e
desafia o espectador a decifrar os seus atributos faciais alterados. Além de
demonstrar a sua angústia corporal, a distorção da sua cara nas diversas
imagens perturba a função da obra como retrato. Noutras palavras, as
fotografias de Mendieta não são coerentes como representativas de si mesma,
interrompendo assim a forma como os outros a vêm e tiram conclusões sobre sua
identidade. Relacionado a essas preocupações, Sem Título (Facial Cosmetic
Variations) mostra Mendieta a manipular sua aparência usando maquilhagem e
perucas, em alguns casos clareia a sua pele e cabelo para questionar o seu
estereotipo nos Estados Unidos. A série foi uma das primeiras experiências de
Mendieta com arte corporal em que afirma o controlo tanto quanto lamenta a
pressão violenta e o desconforto resultante.
Figura 2. Ana Mendieta
Sem Título (Glass on
Body and Face),
1972
Gelatin silver print
Plástico como protagonista
Nesta série fotográfica,
temos a sensação de que as personagens procuram algo com a falta de ar. É como
se com a perda do fôlego, uma das ações mais fundamentais e inconscientes
enquanto seres vivos, pudessem visualizar uma nova forma de ser. É neste
momento que se dá a consciência da própria respiração.
O envolvimento
na pelicula transparente é um gesto codificado que remete aos produtos e
objetos embalados, como alimentos ou mobiliário numa mudança de casa. A dicotomia
entre proteger e sufocar oferece ao espectador a possibilidade de repensar na experiência
como ser humano, nas nossas ações do quotidiano. Da mesma forma que embalamos
um produto para proteção do exterior, também o fazemos quando oprimimos o nosso
estado emocional, e criamos diferentes camadas de peles que não só nos protegem
como também nos sufocam.
“Ao deslocarmo-nos da gramática das palavras para a gramática
do corpo, movemo-nos do campo da metáfora para o campo da metonímia”[1]
(Peggy Phelan). Nestas imagens substitui-se a expressão oral pela
corporal, pois, na verdade, o individuo diz ao público que está desconfortável
com a situação descrita, mas aceita a sua realidade, referente à dor, opressão,
sufocamento, pela necessidade de encaixe num padrão social. Este padrão não
terá de ser necessariamente relativo a valores estéticos, mas principalmente à
pressão psicológica da rotina.
Figura
3.Segunda Pele, 2022
Transformação do Corpo como Autoconhecimento
“Quando uso o termo corpo, estou-me a referir, no sentido
mais básico, a essa condição de não saber, que resulta num conflito entre o que
inegavelmente somos, mas do que, no entanto, ainda nos distanciamos. O corpo
está no campo contraditório dos limites do próprio conhecimento.”[2] (Jane
Blocker)
O vidro partilha com a pelicula aderente a função de deformar
o corpo, no entanto, é detentor de outras características. Em comparação à
película, é um material duro, e apesar da sua fragilidade, permite ao sujeitoexplorar
diferentes formas de transformação do seu rosto.
As novas formas adquiridas no rosto dos modelos funcionam
como forma de libertação do “eu”/ identidade, transmitindo uma sensação de
estranheza pela deformação de um rosto jovial. A importância do corpo está em proporcionar
a exteriorização das sensações, sendo também ele uma “pele” que funciona como
capa de proteção. A estranheza e singularidade das formas criadas pelo plano de
vidro são o resultado de experiências que levam o corpo ao extremo, numa tentativa
de fuga da realidade. A plenitude
presente no rosto das figuras é referente à facilidade com que aceitamos a transformação
em proveito da proteção.
Figura 4.
Segunda Pele, 2022 |
Figura 5. Segunda Pele, 2022 |
Figura 6.Segunda
Pele, fotomontagem, 2022 |
Nesta autorrepresentação, o grau zero surge na forma mais convencional
de apresentação ao mundo (figura 8). O desvio acontece na figura 7, pois o
autorretrato é apresentado com o rosto completamente irreconhecível, envolvido
em película aderente Mais uma vez, o sufoco e asfixia surgem como conceitos que
ilustram o estado psicológico do ser humano quando está perante situações de
stress e condicionamento. A película é uma segunda pele, que distorce e desfigura
o próprio individuo, mas que torna-se uma necessidade.
O autoconhecimento dá-se quando conseguimos retirar toda a
pelicula, numa tentativa de voltar a respirar. Desta forma, o desaparecimento do
sufoco físico significa a libertação emocional.
Figura 7 e 8.Segunda Pele, frames de vídeo performance, 2022
Processo de Libertação
Figura 9. Segunda Pele, frames de vídeo performance, 2022
Conclusão
Existe uma enorme
pressão para pertencer e encaixar num modo social muitas vezes impossível de
alcançar, referindo-me tanto a questões de estética visual como ao stress geral
do quotidiano. É muito comum criar peles na forma de máscaras, num ato de medo,
que se tornam necessárias para o encaixe na sociedade, no entanto, estas
máscaras podem levar ao sufoco de tanta pressão que exercida sobre o eu
verdadeiro. Através dos atos performativos,
oferecemos a liberdade ao corpo para se expressar de forma catártica. As marcas
contextuais de um ato, como embrulhar um objeto, pressionar/amassar algo contra
uma superfície redirecionam-nos para um diferente campo performativo.
A
autorrepresentação é um elemento essencial neste projeto, pois oferece uma
visão única da experiência como ser humano por parte da figura presente nas imagens.
Neste sentido, o exercício de autoconhecimento torna-se real e proporciona uma
maior ligação entre o artista, a obra e o espectador.
Bibliografia
Almeida, Paulo Luís. A RETÓRICA PERFORMATIVA DO DESENHO
DESENHO COMO ATO DE PRESENÇA
RETÓRICA DO ATO PERFORMATIVO
Blocker, Jane (2004). What the Body Cost: Desire, History and Performance. Minneapolis:
University of Minnesota Press.
Gagosian Jenny Saville Works. (2023). Obtido de Gagosian: https://gagosian.com/artists/jenny-saville/
Phelan, Peggy (1993).
Unmarked: The Politics of Performance. London and New York: Routledge.
Untitled (Glass on Body Imprints – Face). (2021). Obtido de Princeton University Art Museum:
https://artmuseum.princeton.edu/collections/objects/55532
Yuste,
J. (17 de dezembro de 2017). Closed Contact, os nus perturbadores de Jenny
Saville e Glen Luchford. Obtido de Cultura Inquieta:
https://culturainquieta.com/es/arte/pintura/item/13127-closed-contact-los-perturbadores-desnudos-de-jenny-saville-y-glen-luchford.html
[1] Phelan, Peggy (1993). Unmarked: The Politics of
Performance. London and New York: Routledge.
[2] BLOCKER,
Jane (2004). What the Body Cost: Desire, History and Performance. Minneapolis:
University of Minnesota Press.