1.2.23

Trabalho Final


Segunda Pele

Filipa Domingues



Abstract

Vivemos numa época em que o corpo é elevado ao extremo e problematizado como nunca. Questionam-se os padrões impostos socialmente, enquanto se normaliza a cedência aos mesmos. A necessidade de transformação física e psicológica tem se revelado numa preocupação da sociedade atual.

Nesta série de fotografias, rostos de jovens são deformados, individualmente e em composições. A transformação é provocada pelos próprios modelos, ou seja, uma auto deformação e possível asfixia. Nota-se uma estranha calma e plenitude das suas expressões enquanto são envolvidos em película transparente ou esmagados contra o vidro, e desta forma, é proporcionada uma sensação contrastante entre a imagem e o observador, pela imprevisibilidade da ação. A dimensão psicológica do ser humano é muitas vezes exteriorizada através de gestos codificados e revela-se no estado físico de cada individuo.

A pelicula surge como uma segunda pele que envolve, deforma, protege e sufoca, como uma metáfora do quotidiano, mas é também uma analogia à dor e desconforto que o ser humano está suscetível. O rosto é o nosso cartão de identidade, sujeito ás diferentes leituras de quem nos observa. É possível manipulá-lo, como instrumento de proteção, para que o estado emocional não seja percetível.

Este projeto evoca conceitos como o autorretrato/autorrepresentação e retórica do ato performativo, e atos fingidos, que apelam à perceção do grau zero da figura representada, sem a terceira pele e controlo exterior, e contribuem na construção da ação.

 

 

Palavras-chave: corpo, deformação, sufoco, autoconhecimento, expressão


Introdução 

A transformação é o conceito chave para o desenvolvimento deste projeto. Através do uso da pelicula é possível criar diferentes formas no rosto humano, que podem seguir o caminho da transformação física, como do sufoco psicológico, ou como uma segunda pele que une os sujeitos da ação. A ideia de transformação de um corpo abrange uma grande variedade de questões socias relativas ao preconceito, shaming, questões de género, pensamento patriarcal e pressão social exercida sobre o ser humano, provocada pela dificuldade de encaixe nos padrões pré-concebidos. Mais uma vez, surge a importância do corpo como transmissor de sensações, relativas ao próprio individuo e a quem o rodeia.

O uso do autorretrato, presente nos elementos fotografados, é um confronto entre o que o sujeito acredita e o que espectador irá sentir, de forma a estimular ambos pensamentos através da relação entre a artista, obra e público. Utiliza a sua imagem como bandeira de representatividade do seu tema de trabalho, normalizando corpos pintados.

O rosto é o nosso cartão de identidade, sujeito a diferentes leituras de quem nos observa. É possível manipulá-lo, como instrumento de proteção quando não se quer expor o estado emocional.

Artistas como Ana Mendieta e Jenny Saville debruçaram-se sobre este tema. Saville colaborou com o fotógrafo Glen Luchford para produzir uma série de fotografias intitulada “Closed Contact” (1995-6), no qual foi fotografada de baixo para cima, deitada numa placa de acrílico transparente, onde foi capturado o seu corpo empurrado, esticado e esmagado até ao extremo. Desta forma, a artista também se transformou numa forma escultural que pode ser modelada e refeita.



Figura 1. Jenny Saville & Glen Luchford, Closed Contact #13, impressão c-print em acrílico, 152,4 x 304,8 cm, 1995-96


 

 
Na sua prática como artista feminista e pintora de carne, Saville chama a atenção para um modelo da perfeição, aquele que reflete essencialmente os desejos masculinos que são continuamente projetados nas mulheres. Apresenta a sua própria perceção e reivindica a conceção feminista de beleza, dizendo não considerar errado o ideal tradicional, apenas que o que as mulheres pensam ser belo pode variar, e não tem necessariamente de pertencer a um só padrão, pois existe beleza no individualismo e, relativamente à arte, na própria pintura, até uma verruga ou uma cicatriz podem ser consideradas bonitas quando são pintadas.

Durante a época de 1970 e 1980, Ana Mendieta trouxe uma abordagem íntima e feminista para arte relacionada com a Terra. Nas suas performances, fotografias, filmes, esculturas (…)  a artista explorou as conexões místicas e emocionais entre o seu corpo e a natureza, por exemplo na série “Silhueta” (1973–80) de performances de “corpo-terra”, por exemplo.

Em obras como Sem Título (Body on Glass Imprinted), Mendieta pressionou um pedaço de vidro contra o rosto e diferentes áreas de seu corpo nu, numa série de 36 imagens. Mais tarde, selecionou treze imagens do seu rosto para serem impressas como fotografias a preto e branco, incluindo este trabalho. A visão assustadoramente próxima das feições deformadas da artista transmite uma sensação de alienação e desafia o espectador a decifrar os seus atributos faciais alterados. Além de demonstrar a sua angústia corporal, a distorção da sua cara nas diversas imagens perturba a função da obra como retrato. Noutras palavras, as fotografias de Mendieta não são coerentes como representativas de si mesma, interrompendo assim a forma como os outros a vêm e tiram conclusões sobre sua identidade. Relacionado a essas preocupações, Sem Título (Facial Cosmetic Variations) mostra Mendieta a manipular sua aparência usando maquilhagem e perucas, em alguns casos clareia a sua pele e cabelo para questionar o seu estereotipo nos Estados Unidos. A série foi uma das primeiras experiências de Mendieta com arte corporal em que afirma o controlo tanto quanto lamenta a pressão violenta e o desconforto resultante.


Figura 2. Ana Mendieta
Sem Título (Glass on Body and Face), 1972
Gelatin silver print


Plástico como protagonista

 Ficar preso dentro de plástico é um medo que muitos de nós temos desde a infância. Todos nós já ouvimos “Não coloques o saco na cabeça!” quando os perigos sobre os sacos plásticos são nos ensinados pela primeira vez.

Nesta série fotográfica, temos a sensação de que as personagens procuram algo com a falta de ar. É como se com a perda do fôlego, uma das ações mais fundamentais e inconscientes enquanto seres vivos, pudessem visualizar uma nova forma de ser. É neste momento que se dá a consciência da própria respiração.

O envolvimento na pelicula transparente é um gesto codificado que remete aos produtos e objetos embalados, como alimentos ou mobiliário numa mudança de casa. A dicotomia entre proteger e sufocar oferece ao espectador a possibilidade de repensar na experiência como ser humano, nas nossas ações do quotidiano. Da mesma forma que embalamos um produto para proteção do exterior, também o fazemos quando oprimimos o nosso estado emocional, e criamos diferentes camadas de peles que não só nos protegem como também nos sufocam.

“Ao deslocarmo-nos da gramática das palavras para a gramática do corpo, movemo-nos do campo da metáfora para o campo da metonímia”[1] (Peggy Phelan). Nestas imagens substitui-se a expressão oral pela corporal, pois, na verdade, o individuo diz ao público que está desconfortável com a situação descrita, mas aceita a sua realidade, referente à dor, opressão, sufocamento, pela necessidade de encaixe num padrão social. Este padrão não terá de ser necessariamente relativo a valores estéticos, mas principalmente à pressão psicológica da rotina.





Figura 3.Segunda Pele, 2022



Transformação do Corpo como Autoconhecimento 

“Quando uso o termo corpo, estou-me a referir, no sentido mais básico, a essa condição de não saber, que resulta num conflito entre o que inegavelmente somos, mas do que, no entanto, ainda nos distanciamos. O corpo está no campo contraditório dos limites do próprio conhecimento.”[2] (Jane Blocker)

O vidro partilha com a pelicula aderente a função de deformar o corpo, no entanto, é detentor de outras características. Em comparação à película, é um material duro, e apesar da sua fragilidade, permite ao sujeitoexplorar diferentes formas de transformação do seu rosto.

As novas formas adquiridas no rosto dos modelos funcionam como forma de libertação do “eu”/ identidade, transmitindo uma sensação de estranheza pela deformação de um rosto jovial. A importância do corpo está em proporcionar a exteriorização das sensações, sendo também ele uma “pele” que funciona como capa de proteção. A estranheza e singularidade das formas criadas pelo plano de vidro são o resultado de experiências que levam o corpo ao extremo, numa tentativa de fuga da realidade. A plenitude presente no rosto das figuras é referente à facilidade com que aceitamos a transformação em proveito da proteção.





Figura 4. Segunda Pele, 2022




Figura 5. Segunda Pele, 2022




Figura 6.Segunda Pele, fotomontagem, 2022




O questionamento é a base essencial no processo de autoconhecimento. Questionar as nossas ações e sentimentos poderá levar-nos a um estado confuso, em que não sabemos quem somos, mas esse será o ponto de partida para a verdadeira descoberta.

Nesta autorrepresentação, o grau zero surge na forma mais convencional de apresentação ao mundo (figura 8). O desvio acontece na figura 7, pois o autorretrato é apresentado com o rosto completamente irreconhecível, envolvido em película aderente Mais uma vez, o sufoco e asfixia surgem como conceitos que ilustram o estado psicológico do ser humano quando está perante situações de stress e condicionamento. A película é uma segunda pele, que distorce e desfigura o próprio individuo, mas que torna-se uma necessidade.

O autoconhecimento dá-se quando conseguimos retirar toda a pelicula, numa tentativa de voltar a respirar. Desta forma, o desaparecimento do sufoco físico significa a libertação emocional.



Figura 7 e 8.Segunda Pele, frames de vídeo performance, 2022





Processo de Libertação




Figura 9. Segunda Pele, frames de vídeo performance, 2022


 

 

Conclusão

 A transformação física está automaticamente ligada à dimensão psicológica, independentemente se é positiva ou negativa. Vivemos numa época em que somos bombardeados diariamente com imagens. A imagem e aparência tornaram-se extremamente importantes para a sociedade, principalmente na faixa etária jovem.

Existe uma enorme pressão para pertencer e encaixar num modo social muitas vezes impossível de alcançar, referindo-me tanto a questões de estética visual como ao stress geral do quotidiano. É muito comum criar peles na forma de máscaras, num ato de medo, que se tornam necessárias para o encaixe na sociedade, no entanto, estas máscaras podem levar ao sufoco de tanta pressão que exercida sobre o eu verdadeiro.  Através dos atos performativos, oferecemos a liberdade ao corpo para se expressar de forma catártica. As marcas contextuais de um ato, como embrulhar um objeto, pressionar/amassar algo contra uma superfície redirecionam-nos para um diferente campo performativo.

A autorrepresentação é um elemento essencial neste projeto, pois oferece uma visão única da experiência como ser humano por parte da figura presente nas imagens. Neste sentido, o exercício de autoconhecimento torna-se real e proporciona uma maior ligação entre o artista, a obra e o espectador.

 



Bibliografia

 

Almeida, Paulo Luís. A RETÓRICA PERFORMATIVA DO DESENHO

                                     DESENHO COMO ATO DE PRESENÇA

                                     RETÓRICA DO ATO PERFORMATIVO

Blocker, Jane (2004). What the Body Cost: Desire, History and Performance. Minneapolis: University of Minnesota Press.

 

Gagosian Jenny Saville Works. (2023). Obtido de Gagosian: https://gagosian.com/artists/jenny-saville/

 

Phelan, Peggy (1993). Unmarked: The Politics of Performance. London and New York: Routledge.

 

Untitled (Glass on Body Imprints – Face). (2021). Obtido de Princeton University Art Museum: https://artmuseum.princeton.edu/collections/objects/55532

 

Yuste, J. (17 de dezembro de 2017). Closed Contact, os nus perturbadores de Jenny Saville e Glen Luchford. Obtido de Cultura Inquieta: https://culturainquieta.com/es/arte/pintura/item/13127-closed-contact-los-perturbadores-desnudos-de-jenny-saville-y-glen-luchford.html

 



[1] Phelan, Peggy (1993). Unmarked: The Politics of Performance. London and New York: Routledge.

 

[2] BLOCKER, Jane (2004). What the Body Cost: Desire, History and Performance. Minneapolis: University of Minnesota Press.