(1) A ideia da transferência-de-uso de uma ação para os suportes e processos de desenho deste exercício veio de um resgate da minha infância no antro familiar. Os movimentos circulares realizados com um garfo, no ato de preparar a massa para a ingestão, sem cortar o alimento, que minha avó materna categoricamente me ensinou, foram os motivos pelos quais realizei esta obra. Para tanto, após uma primeira experiência em sala de aula usando tinta guache, porém sem os efeitos esperados, decidi ir a um extremo para obter melhores resultados: preparei um prato de massa com bastante molho e parte do molho que sobrou na panela, utilizei como a tinta para o exercício. Despejada na folha de papel, o molho se comportou como pigmento e o garfo, utensílio com o qual eu fazia os movimentos circulares de juntar a massa, virou o pincel. Fazendo gestos similares ao de um pincel, mas mantendo a trajetória circular característica do enrolo da massa, fiz marcas de fricção com o garfo no papel, através do molho, que funcionou como uma espécie de tinta negativa. Ao invés de pintar com o molho, ele comportou-se como um tingidor do papel, e ao ser transpassado pelo garfo, deixava o papel novamente aparente, fazendo com que os sulcos formados pelos dentes do talher criassem um desenho.
(2) A vaidade do ser humano e a preocupação com a sua aparência para suplementar sua autoestima, e a manutenção do espaço público de forma que fique limpo, organizado e de certa maneira belo, foram as molas motrizes para esta segunda parte do exercício da transferência-de-uso. Convidados a fazer uma transmissão de ações de campos performativos distintos, utilizei estas duas variantes da terminologia “beleza” para representar a minha transferência de uso. Em frente à minha residência, existem bolas de concreto, com um pequeno suporte abaixo de si, para impossibilitar que os automóveis estacionem por cima do pavimento destinado somente à caminhada. Analisando estas esferas, parecem-se muito com a forma de uma cabeça e pescoço, como se fizessem parte de um corpo soterrado pelo concreto até os ombros. Desta forma, fazendo o uso de um pente e de minhas mãos, penteei a bola de concreto, fazendo a justaposição entre a ação de manutenção da ordem, organização e beleza de um espaço público com um ato de embelezamento humano.
(3) Como uma terceira provocação, fomos instigados a transferir um elemento do desenho para fora de sua circunstância normal de uso. Desta forma, ao caminhar em uma praça perto de minha morada, verifiquei que alguns dos plátanos que lá estavam plantados foram cortados em sua base, que analisada de perto, exibia uma superfície cheia de anéis no seu núcleo mais escuro e denso (que são marcas do clima fixadas com passar do tempo¹) e uma espécie de camada externa a este centro, esta última, sem anéis. A prática do desenho escolhida foi a de demarcar, e com a ajuda de um pincel marcador, fiz o desenho simulando anéis nesta parte externa ao núcleo da árvore até um primeiro limite de sua própria casca (para manter a forma circular). E intensão desta transferência-de-uso é de externar o que poderia ser uma eventual continuidade da vida do plátano, como se a passagem das estações tivesse continuada a ser impressa no tronco da árvore através dos anos, formando novos anéis, como se fosse uma expressão do tempo por meio do desenho da árvore, replicada de forma não natural.
¹ Centro Ciência Viva da Floresta. Disponível em: http://www.ccvfloresta.com/dendrocronologia
Acesso em 04/10/2015.