16.10.16

A Memória do Movimento

(1)

Vestir.

A criação da memória de uma acção, registando a mesma pelo desenho, através da linha e mancha sobre a através do papel.






Fotos da memória do movimento.



Vestimos o corpo com o nosso próprio corpo, deixando na roupa marcas do corpo que veste o corpo, mas sem que essas marcas se mostrei. Desenhamos diariamente nele o gesto de o vestir, de o esconder, de o fazer ser contido em algo que o transforma mais em pessoa e menos em animal. Fechamos o nosso corpo em algo que não lhe pertence mas antes o contém, em algo que não faz parte dele mas lhe fazemos pertencer. As marcas de o vestir são a memória de que o vestimos.


Esta reflexão do ato do quotidiano de vestir não é algo constante nas nossas vidas: nós só nos vestimos, não pensando, regra geral, no acto de nos vestirmos como elemento susceptível à reflexão. Tal pode ser comparado à decisão de Allan Kaprow de prestar atenção ao escovar dos dentes: começou a reparar no efeito que essa acção fazia no seu corpo, como o corpo se adaptava à acção, observando o movimento do seu ombro. Fê-lo privadamente, sem galeria de arte ou público a julgar. Foi esta intimidade que me interessou peculiarmente (daí ter realizado a acção no meu quarto, onde me visto), e é este factor que separa o acto performativo da performance: enquanto o primeiro funciona como observação e transferência do quotidiano e real, o segundo acrescenta uma carga teatral, fazendo da repetição do acto do quotidiano algo profundamente encenado.

Deste modo, a partir de um modelo de uma camisola de papel (suporte do desenho), e revestindo as mãos (maiores responsáveis pela marca, como extensão do corpo), é desenhado o movimento do vestir. A linha encerra o movimento (representado pela mancha), sendo que o coser enfatiza o auto-enclausuramento do corpo.

Sendo este um acto baseado “no uso desviado de rotinas quotidianas pensadas como performances fora dos espaços artísticos da performance” (ver referência de Paulo Luís Almeida), trata-se de um acto fingido, que processa a informação do quotidiano noutro contexto, no conceito de lifelike de Allan Kaprow.

Ora, esta acção só veio tornar visível o desenho que o corpo provoca no acto de vestir. Não há desenho sem gesto, e não há gesto sem corpo. Enquanto David McNeill afirma, em Hand and Mind, que gesto e discurso contêm informação sobre as mesmas cenas, mas cada um pode incluir algo que o outro deixa de fora, atrevo-me a dizer que o desenho é o discurso maior do gesto.


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(2)

Ouvir + [Raspar de parede (através do apontar) + Contemplação de espaço]

O corpo desenhou o som, sendo o desenho orientado pelas manchas da parede que o espaço continha, originando a representação da passagem do tempo.




 Vídeo do acto.
Desenhos do tempo do movimento, memória fixa do som.


Os sentidos do corpo humano são os que ditam primeira e instintivamente os actos do mesmo: se sinto frio, visto um casaco; se algo me enjoa, paro de comer. A audição, por sua vez, é um dos sentidos mais responsáveis por criar a atmosfera em que o corpo e a sua acção se inserem, nomeadamente no sentido de aconchego e inserção no espaço (com a música) e na criação de calma e segurança e os seus opostos (por exemplo, presença ou ausência de sons bruscos). Podemos observar tal nitidamente nos filmes, onde a música está sempre presente como criadora de atmosfera emocional, funcionando como impulsionadora de sentimento para a audiência, em paralelo com a sucessão de acontecimentos da película. 

Seguindo estas premissas, este segundo trabalho ensaia a transferência da audição para a acção do espaço da parede — trata-se, portanto, de uma imitação, através da transposição do audível para o visível. A marca que de tal resulta é sonora (raspagem), consequência da subida ou descida na nota musical, enquanto os avanços e recuos do corpo devem-se à repetição da sequência das mesmas (repare-se na reacção do mesmo aquando a paragem da música — a cabeça aponta para a fonte sonora). Estes movimentos são apresentados através de gestos deíticos, como apresenta David McNeill — movimentos de apontar, geralmente realizados com o dedo indicador.

Para além do raspar, é possível observar o movimento visual, possível de reproduzir posteriormente como desenho que contempla, durante a sua execução, o passado e o presente da acção de raspar, sendo que o futuro quando é desenhado, já é passado. Assim, a acção temporária do acompanhamento do som é fixa ao papel pela representação dos três estados de tempo do movimento. Desta forma, o corpo une-se ao espaço e tempo da acção, tendo por intermédio o som. O som, assim, em si, contém ele próprio gestos, expostos neste exercício pelo movimento e posterior desenho do som.


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(3) 

Contornar + Manchar + Dobrar

O Espaço Físico no corpo e como corpo.





Parte do processo da deformação do círculo. 
Fechamento do corpo em paralelo com o efeito no círculo, como desenho da memória da deformação.


Pensando no espaço físico como algo independente ao ser humano, mas inerente a este (pois é, no geral construído pelo e para o mesmo), atribuí o adjectivo fechado ao espaço físico como conceito: cada objecto é fechado em si, porque acabado — viável a transformações mas existindo como finito. Geometricamente transpondo o conceito, desenhei um círculo. Na verdade, é impossível o ser humano desenhar manualmente um círculo e este ser indubitavelmente perfeito. Atingir esse círculo seria como adquirir todo o conhecimento do mundo*. Interessou-me, portanto, desenvolver esta questão do perfeito vs. humano, alargando-o para o rígido vs. orgânico e racional vs. corporal

Por forma a tornar visíveis estas dualidades, escolhi o espaço físico (concreto, não conceptual) como sendo o lado lateral externo do meu joelho esquerdo. Assim, associou-se uma forma orgânica vinda da rigidez, simbolizadora primeiramente do conceito de fechado do espaço físico, a um espaço que ia ainda mais deformar a forma. Continuando o processo com o fechamento do joelho, tal como uma dobradiça de porta, continuei em aproximação ao primeiro adjectivo atribuído. Esse movimento criou novas formas, originadas, literalmente, pelo fechamento do espaço físico (o círculo e o joelho). 

Deste modo, manipulei, como lhes chama Richard Schechner, as minhas tiras de comportamento, conceptual e concreto, tratando-se este exercício de um “comportamento restaurado”, — simbólico e reflexivo. A simbologia presente neste exercício tem como pilar a metáfora, traduzida como gesto metafórico, assim definido por David McNeill, no sentido em que um conceito abstracto é apresentado como imagem criadora de uma narrativa (desde a criação do círculo à sua deformação por via do corpo).

(referência ao conto Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges)


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Referências:

ALMEIDA, Paulo Luís (2008). Actos fingidos: aspectos da dimensão performativa do desenho (texto policopiado). Comunicação apresentada no ciclo Lições do Desenho. Lisboa: Espaços do Desenho.

ROSAND, David (2000). Drawing Acts – Studies in Graphic Expression and Representation. Cambridge: Cambridge University Press.

SCHECHNER, Richard (2002). Performance Studies: an Introduction. New York: Routledge.

PETHERBRIDGE, Deanna. (2011). "The Performativity and Traces of Action". in The Primacy of Drawing. New Haven: Yale University Press.

HOWELL, Anthony. (2000). "Transference, substitution and reversal". In The Analysis of Performance Art: A guide to its theory and practice. 2ª edição. Amsterdam: OPA, pp. 135-147.

KAPROW, Allan (1986 [2003]). “Art Which Can’t Be Art”.In Essays on the Blurring of Art and Life. Expanded Edition. Los Angeles: University of California Press, pp. 219-222.

RUSSELl ; SAWDON, Phil (2012). Hyperdrawing - Beyond the Lines of Contemporary Art. London:, I.B. Tauris.
SCHECHNER, Richard. (1985). “Restoration of Behavior”. In Betwenn Theater and Anthropology. Philadephia: University of Pennsylvania Press, pp. 35-116