17.10.16



"Passar a ferro"  
Necessidade de cuidar diariamente o "vestuário"



Perante um papel enrugado tentei alisa-lo, "passar a ferro", mas o instrumento ferro  foi substituído pelo carvão [1], que por onde passava deixava manchas cinzas, onde umas marcas desaparecem outras surgem.   

Relembrar. Sentir. Pensar. 


    A acção de "passar a ferro", levou-me a tentar buscar nas minhas memórias [2]  de como penso que o meu corpo interage com todos os agentes da acção (a roupa/papel, o ferro/carvão, o espaço da acção). 
   Ao realizar a acção levei o meu corpo a manter uma pressão e a realizar movimentos circulares com o carvão sobre o papel vegetal, com uma das mãos, e com outra a esticar o papel, numa tentativa de não danificar o suporte, mas como não soube adequar [3] essas acções com a fragilidade do papel, ele acabou por ganhar dois buracos. Apesar desse acidente continuei a acção, depois de um lado estar "passado", para terminar, virei a "roupa" e repetia a acção [5].
    
   Esta acção levou-me a imaginar que o carvão queimava,  pensar/sentir a dor da mão a queimar quando esta entrava em contacto com o ferro, essa lembrança, fez me afastar a mão do utensílio, embora não sentisse aquele calor vindo do carvão, tinha que fazer um esforço para não esquecer [4].   
    


[1] Aqui o desenho tira partido da matéria que dava originalmente energia ao utensílio domestico e da acção associada a esse instrumento, passar a ferro. 

[2] "(...) a memória não se reduz a um amontoado de informações visuais, prontas a ser enviadas para as mãos; pelo contrário, atentando e demorando-se nas impressões ópticas, ela reinventa a realidade cruzando-a com outras memórias, experiências, sensações, compondo uma nova visão, um novo conjunto." 

[3]  Como quem adequa a temperatura, pressão, os movimentos do ferro ao vestuário.

[4] A buscar de outras sensações que não só aquelas que o meu corpo aplica mas também aquelas que obrigam o meu corpo a se afastar. Desde pequenos somos avisado que o ferro queima mas somos bastante curiosos para ir ver se realmente queima, e quando já somos mais crescidos e nos ensinam a passar a ferro, por vezes é o calor que ele liberta que (re)lembra o corpo dessa dor e os reflexos afasta-o.

[5] Repetir-transferir, repetir e repetir, mas pensar ao mesmo tempo na acção de "passar a ferro", tomar consciência.




Triturar e Aglutinar
Acção sobre um objecto, giz 






Triturar

Reduzir a pó; pulverizar, esfarelar, moer.
[Figurado] Atormentar, afligir.

Aglutinar

Colar; juntar com o auxílio de cola ou grude; fazer com que adira; juntar por aglutinação;
Ação de grudar ou pegar;
Ligar, agregar ou unir.
Sinônimo de: guardar, reunir, colar, combinar, unir, soldar, justar

Ver a tentativa de juntar como um arrependimento de ter destruído ou tentativa de tornar algo numa coisa nova?  


    Ao direccionar a força do corpo para um material duro que "ataca" aquele mais fraco faz com que este ganhe mazelas, e não volte a ser o mesmo, o giz foi gradualmente perdendo a sua forma inicial e gradualmente ficou em pó, que se espalhou na lousa e na esfera, nas armas do "crime", e o meu corpo sentia o limite do material, que se deixava destruir.
    Com a alteração da forma do material e a mistura de cola, o giz teve a hipótese de se tornar algo novo,  podendo ganhar outra utilidade. Tocando no material, observei que se tinha tornado numa massa moldável e "ficava" com as marcas de quem ou o que o tocava. Assim, como se tivesse apoderado do "giz" amassei e deixei marcas da passagem naquele objecto, impressões digitais 
    Depois da acção, tive consciência da violência e imposição de poder sobre o material, do poder da força quando triturava e aglutinava, poder de impor a minha marca, de tornar supostamente algo meu (a minha impressões digitais).  

Observação: quando reparei nos objectos que usei (lousa, giz e esfera ) todos remetia para a infância e educação, e quando me enviaram uma foto de mim a realizar uma acção o meu corpo "aglutinou-se" com a câmara, uma ajuda ou um outro olhar?  



Apropriação  






“Ver um desenho é desenhar outra vez, como um contágio motor onde se reconstituem mentalmente os gestos, atribuindo-lhes um conteúdo afetivo, e se entra no espaço imaginário e somático do desenhador.” (Paulo Almeida)

"Mesmo o objecto mais familiar aos nossos olhos se torna outro se nos aplicarmos a desenha-lo: apercebemo-nos de que o ignorávamos, de que nunca o tínhamos visto verdadeiramente. O olho, até esse momento, não tinha servido senão de intermediário." (Paul Valéry)



    Ver um desenho, mas estaremos só unicamente a passar a vista? Ver um desenho é  tentar desenhar-lo,  perceber o movimento, que utensílio usou, a pressão, o que estava realmente a ver e a pensar, que sensações despertou ao desenhador e desperta ao observador.  Haverá realmente sentimentos parecidos ou uma frieza na observação?  
«(...) paisagem que tem interesse para quem os tirou porque estava lá e sentiu alguma coisa; mas qualquer pessoa olhará para eles com frieza de um modo inteiramente justificado, até ao ponto em que é justificável olhar friamente para uma coisa.» (L.Wittgenstein, Cultura e Valor)  
    Tudo isto ocorre num anacronismo[1] entre o tempo e espaço da acção do "verdadeiro" desenho, o tempo da observação e o possível (re)fazer do desenho da-lhe novos significados, novas historias.  
    Eu escolhi um desenho (ou uma pintura?) de Alberto Giacometti, porque sinto uma empatia com os seus trabalhos e para mim é uma referencia artística (o passado referencia para o presente),  o tentar reproduzir o desenho levou me a priori a conhecer um pouco do processo de trabalho dele [2], mas a memória fragmentada, subjectiva, ao dar atenção a certos pormenores, e ao existir muitas coisas que nos escapam tanto ao ver desenhar como no desenhar, e o ambiente do desenho influenciava o acto de desenhar, a sombra das folhas vão alterando a percepção do desenho, o pagar, refazer, pagar, re-trabalhar sobre pedra e no final não deixar ficar nada, só temos video e fotos, que podem estes ser eliminados, nos resta novamente a memória fragmentada.  


[1]  Vendo isto como um jogo, ao apropriar me de um desenho, o (re)desenhar, e tirar fotos desse processo, vou jogando com diferentes tempos: tempo do desenho do artista, o tempo do meu desenho, e o tempo da fotografia, tempo do observador da fotografia.  

[2] O que está por detrás do desenho: outros desenhos, pinturas, a sua vida, o modelo, o espaço, acontecimentos...