10.3.20

TRANSFERÊNCIA-DE-USO


tirar

Abraçar. Afagar. Acarinhar.
Ausência marcada por finos vestígios.
Tirar. Excluir. Apagar.
Transferir. Inscrever. Registar.
Camadas sobrepostas de linhas e pontos.








Este exercício relaciona-se com o meu trabalho Afectos (2017), no qual é explorado o aprisionamento de um conjunto de vários gestos individuais, em negativo (vazio). Aqui, a dualidade entre uma presença (corpo de um gato) e a sua posterior ausência, é transferida e materializada na folha de papel, através da ação do verbo tirar.
A frase de Novalis, “Estamos sós com tudo aquilo que amamos”, é o ponto conceptual do registo deste ato autossomático. A minha inquietude, face a uma ausência corporal, mas em simultâneo com a presença de resíduos, faz com que recorra a um gesto de dentro para fora, de exclusão. Mantendo um ritmo constante, que se torna cansativo, tem um resultado gráfico semelhante na sua forma com os próprios vestígios que pretendo apagar.

Chafes, R. (2000). Fragmentos de Novalis (2ª). Lisboa: Assírio & Alvim.



repousar





Fazer pão, é uma tarefa que pratico quase todos os dias. Geralmente, o sovar da massa é feito ao final do dia, ficando depois em repouso durante a noite, para ser cozido matinalmente.
A envolvência do meu corpo com o recetáculo da massa do pão, pretende criar uma relação de simbiose entre duas ações distintas, mas que carecem dos mesmos cuidados. Repousar o corpo após os estímulos de um dia e mantendo uma temperatura corporal confortável, é idêntico ao processo de levedura da massa do pão que é favorecido por uma temperatura ambiente de 24 a 27 ºC.
A cena Levitation do filme Mirror (1975) de Tarkovsky (1932-1986), tem influência na concretização e sequência destas imagens. Ainda, a semelhança entre as palavras levedar e levitar, leva-me a um constante jogo de significados entre estes dois verbos. Na ação levedar (origem da palavra: lêvedo e ar) é como se existisse uma indução intencional, a possibilidade de tornar o meu corpo mais leve e deste modo, poder levitar.
A duração deste exercício foi cerca de 120 minutos e a massa aumentou ligeiramente de volume.



devagar





Vivemos seduzidos por um ritmo acelerado que nos absorve e nos mantém, maquinalmente, focados em desejos e ideais mascarados.
Para este exercício, que tem como premissa uma lista (2014) onde associo a palavra slow a ações as quais elejo como vitais, utilizo a mesma palavra em português – devagar. Ao redirecionar o ato da escrita da palavra devagar, ritmadamente, para o meu corpo, utilizando-o como superfície de inscrição, pretendo fazer uma união entre este e a terra.
Para Flusser, o gesto de escrever é considerado como uma necessidade básica e inata ao ser humano. Assim, ao fazer percorrer a palavra devagar a marcador vermelho, de um modo repetido e contínuo, desde o meu braço esquerdo até ao meu pé, tem como resultado um código linear gráfico.
A influente obra de Jenny Holzer (n. 1950), que tem como veículo para o seu trabalho o discurso escrito, já em 1993 escreve, com marcador, mensagens diretamente na pele - Lustmord. Remeto ainda, o ato deslocado da escrita da palavra devagar, para o meu trabalho Orações (2017), onde foi produzido um conjunto de frases em relevo e espelho. A sua intenção é o de marcar graficamente um corpo, como um ritual de evocação.


Flusser, V. (1994). Los Gestos. Barcelona: Editorial Herder.
Bernadac, M.-L. (2001). Jenny Holzer OH. Bordeaux: capcMusée d’art contemporain de Bordeaux.