25.3.21

Retórica do Ato Performativo


 

Workshop e Seminário 2 – Retórica do Ato Performativo

Joana Carvalho, 1ºano de Mestrado em Artes Plásticas – Pintura

 

 



 

1. Descrição da obra e aspetos contextuais relevantes / análise componencial;

A resposta ao exercício em questão materializou-se num pequeno vídeo autorrepresentativo, em que duas imagens se intercalam num ritmo aleatório mas definido. Uma imagem é a minha sombra, a minha silhueta. A outra imagem é o chão, terra húmida, lamacenta, cuja forma desenhada (também aleatoriamente) lembra um losango. Há também momentos em que uma terceira imagem se forma, que é a ausência dela – a imagem fica preta na sua totalidade devido à momentânea ausência de luz. A forma da minha sombra e a forma deste desenho na terra intercalam-se e confundem-se, parecendo por momentos que se transformam uma na outra, e noutros momentos sobrepondo-se. A forma do desenho na terra estava já feito quando cheguei ao local. Foi provavelmente resultado das marcas dos pneus de bicicletas que regularmente ali passam. O facto de as imagens intercalarem deveu-se a uma falha elétrica que estava a ocorrer quando ali passava. Sendo este caminho de terra batida uma ciclovia, estava iluminada com vários postes de iluminação. Naquele momento, por uma longa extensão desse caminho, imensos desses postes piscavam, desligando e voltando a ligar de forma intercalada. Foi um feliz acidente, pois criou efeitos visuais, a meu ver, curiosos. Desse modo foi possível ver a imagem da terra marcada sobreposta e intercalada com a projeção da minha sombra no mesmo local.

Relaciono desde já esta peça com a obra de Ana Mendieta, por várias razões: As suas esculturas na terra, cujas formas têm normalmente referência à figura feminina, podendo em alguns casos lembrar vaginas – como por exemplo a sua obra Untitled (Volcano) (1979) (M.Viso, p.191) - assemelham-se largamente à forma que encontrei no solo, também ele terra. Para além disso, na série de obras Silueta Series da artista, vemos precisamente o uso da sua silhueta em diferentes locais do globo, sempre na terra ou em locais naturais (Del Rio, p.33). Não podia deixar de referir esta semelhança da utilização da própria silhueta e de terra (incluindo uma forma feminina desenhada na terra), já que a artista é uma grande referência para mim, em cujo corpo de trabalho encontro objetivos parecidos com os meus. Então, mesmo neste “acaso” que foi encontrar luzes a falhar num local com marcas de bicicleta no chão de terra batida, acaba por não ser assim tão por acaso, já que o meu olhar vai naturalmente ter com o que lhe interessa – ver nunca é um ato inocente.



                                                                            Untitled (Volcano),Ana Mendieta, 1979

 


                                                                       Silueta Series, Ana Mendieta, 1973-78



2. Análise do processo retórico da imagem: conceitos chave (Grau percebido e grau concebido; grau zero e isotopia, operações retóricas e modos retóricos);

Neste vídeo podemos considerar que existem dois “graus zero” - a imagem da terra marcada, e a imagem que mostra a sombra projetada no solo, da minha silhueta. Podem ser consideradas “graus zero” pois, individualmente, a imagem percebida corresponde à imagem concebida. Ou seja, a imagem das marcas de pneus de bicicleta na terra é verosímil, não causa estranhamento, não foge à norma. A imagem apreendida corresponde a um padrão pré-concebido no imaginário de quem a vê. A imagem de uma sombra projetada no solo é também verosímil, não há nada que, no geral, possa causar estranhamento. São isotopias.

O desvio aqui acontece quando as duas imagens se intercalam e sobrepõe, parecendo por momentos que se transformam uma na outra ou que são uma só. Fazendo com que as suas formas, à partida não assim tão semelhantes, sejam forçadamente equiparadas pelo intercalar das suas aparições no mesmo plano, não lado a lado, mas sobrepostas. Neste caso, se as imagens fossem mostradas individualmente poderia haver um desvio da norma pelo deslocamento de contexto, mas ao serem relacionadas deste modo há outro tipo de desvio. Há uma associação entre elas que, à partida, não seria natural ou intuitiva se não estivessem dispostas desta forma. É causada então a sensação de alotopia.

“O trabalho da arte é o de jogar com a ambiguidade das semelhanças e a instabilidade das dissemelhanças, de operar uma redisposição local, um reagenciamento singular das imagens circulantes” (Rancière, p. 36)

Neste caso o gesto retórico (gesto de desvio) poderá localizar-se no campo da substituição das imagens uma pela outra, sugerindo camuflagem e renovação. Posso então considerar este um gesto inmutatio. Apesar de uma forma (da primeira imagem) não se transformar na outra (segunda imagem), pode-se dizer que a sugestão dessa transformação está presente, é sugerida pela rápida transição de uma imagem para a outra, enganando o nosso olhar e fazendo-o formar continuidades formais que ligam, por si só, as formas e faz parecer que se transformam uma na outra. E de facto há momentos em que as imagens se sobrepõe, literalmente, devido à ação dos candeeiros que piscam indefinidamente. Este processo (gesto retórico) seria categorizado como Transmutatio, que considero oportuno referir na análise deste vídeo.

Sobre os métodos retóricos, falados pelo Grupo μ, classifico este um método de emparelhamento: ato paralelo, pois as imagens aparecem intercaladas, são mostradas individualmente, apesar desse processo de intercalar ser realmente rápido. Isto causa também momentos que poderiam ser categorizados no campo do método de interpenetração: ato simultâneo pois as imagens, como referi acima, por distorção ótica quase se sobrepõe – havendo momentos em que se sobrepõe.

 

 

3. Os efeitos da alotopia; o que se pretende com o desvio?

A nível conceptual, o que poderá resultar desta alotopia reside na metáfora. É uma autorrepresentação não totalmente pura mas próxima do literal (a minha sombra) que se intercala, se compara a uma imagem, um desenho na terra, e até à própria terra. Se fossemos mais longe, poderíamos dissecar o significado de “sombra” e de “terra” e daqui retirar todo um conjunto de significados. Para não falar da forma do desenho na terra que, ao sugerir a forma de uma vulva é também autorrepresentativo. Mas, voltando a falar do trabalho de Ana Mendieta: A artista foi exilada do seu país aos 13 anos de idade, tendo sido separada das suas raízes e da sua cultura em tenra idade. Afirma a artista que a sua forma de se reconectar às suas origens é através da sua arte.

 

““I have been carrying on a dialogue between the landscape and the female body (based on my own silhouette). I believe this has been a direct result of my having been torn from my homeland (Cuba) during my adolescence. I am overwhelmed by the feeling of having been cast from the womb (nature). My art is the way I re-establish the bonds that unite me to the universe. It is a return to the material source. Through my earth/body sculptures I become one with earth… I become an extension of nature and nature becomes an extension of my body. This obsessive act of reasserting my ties with the earth is really the reactivation of primeval beliefs… [in] an omnipresent female force, the alter-image of being encompassed within the womb, is a manifestation of my thirst for being.”

Ana Mendieta, 1981, Unpublished statement” (Perreault, p.10).

 

É desta origem personificada na terra a que me quero referir. No meu caso, não no sentido de origem nacional ou territorial, mas num sentido mais lato, mais essencialista. É então, a minha vontade de me fundir com a terra, com a natureza, de ser representada através dela e com ela, paralela à de Ana Mendieta. Quero aqui representar essa origem, essência em mim, presente, no entanto, em tudo e todos, pois tudo e todos vêm da terra (da mãe).

 

 

4. Conclusão: Há um lugar para a retórica no pensamento contemporâneo sobre as imagens e sobre os processos artísticos?

O mundo artístico (nos seus meios oficiais e amadores) está permeado de retórica. É precisamente através desses processos retóricos que o artista questiona, desafia e reinventa o mundo. É aqui papel do artista como o de um filtro através do qual a(s) “realidade(s)”, ou a(s) isotopia(s) passa(m) e é(são) intervencionada(s), com recurso a repetições, subtrações, substituições, transmutações – todo o tipo de alterações – que permitem o repensar de estruturas, e causam estranhamento – alotopia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia:

M.VISO, Olga, Ana Mendieta – Earth Body – Sculpture and Performance 1972-1985, Hatje Cantz Publishers.

DEL RIO, Petra Barreras, “A historical overview”, In Ana Mendieta – A Retrospective, The New Museum of Contemporary Art, New York, p.33

PERREAULT, Jonh, “Mendieta’s body of work”, In Ana Mendieta – A Retrospective, The New Museum of Contemporary Art, New York, p.10

RANCIÉRE, Jacques (2011), O Destino das Imagens. Lisboa: Orfeu

 

 

Referências:

Documentos disponibilizados pelo professor Paulo Almeida - Seminário de Desenho e Performatividade. Mestrado em Artes Plásticas. Porto: FBAUP.






Mostro aqui também um segundo exercício que realizei no contexto deste workshop, 

mas que não foi analisado: