Workshop e
Seminário 2 – Retórica do Ato Performativo
Joana
Carvalho, 1ºano de Mestrado em Artes Plásticas – Pintura
1. Descrição da obra e aspetos contextuais relevantes /
análise componencial;
A resposta ao exercício em questão materializou-se num
pequeno vídeo autorrepresentativo, em que duas imagens se intercalam num ritmo
aleatório mas definido. Uma imagem é a minha sombra, a minha silhueta. A outra
imagem é o chão, terra húmida, lamacenta, cuja forma desenhada (também
aleatoriamente) lembra um losango. Há também momentos em que uma terceira
imagem se forma, que é a ausência dela – a imagem fica preta na sua totalidade
devido à momentânea ausência de luz. A forma da minha sombra e a forma deste desenho
na terra intercalam-se e confundem-se, parecendo por momentos que se
transformam uma na outra, e noutros momentos sobrepondo-se. A forma do desenho
na terra estava já feito quando cheguei ao local. Foi provavelmente resultado
das marcas dos pneus de bicicletas que regularmente ali passam. O facto de as
imagens intercalarem deveu-se a uma falha elétrica que estava a ocorrer quando
ali passava. Sendo este caminho de terra batida uma ciclovia, estava iluminada
com vários postes de iluminação. Naquele momento, por uma longa extensão desse
caminho, imensos desses postes piscavam, desligando e voltando a ligar de forma
intercalada. Foi um feliz acidente, pois criou efeitos visuais, a meu ver,
curiosos. Desse modo foi possível ver a imagem da terra marcada sobreposta e
intercalada com a projeção da minha sombra no mesmo local.
Relaciono desde já esta peça com a obra de Ana Mendieta, por várias razões: As suas esculturas na terra, cujas formas têm normalmente referência à figura feminina, podendo em alguns casos lembrar vaginas – como por exemplo a sua obra Untitled (Volcano) (1979) (M.Viso, p.191) - assemelham-se largamente à forma que encontrei no solo, também ele terra. Para além disso, na série de obras Silueta Series da artista, vemos precisamente o uso da sua silhueta em diferentes locais do globo, sempre na terra ou em locais naturais (Del Rio, p.33). Não podia deixar de referir esta semelhança da utilização da própria silhueta e de terra (incluindo uma forma feminina desenhada na terra), já que a artista é uma grande referência para mim, em cujo corpo de trabalho encontro objetivos parecidos com os meus. Então, mesmo neste “acaso” que foi encontrar luzes a falhar num local com marcas de bicicleta no chão de terra batida, acaba por não ser assim tão por acaso, já que o meu olhar vai naturalmente ter com o que lhe interessa – ver nunca é um ato inocente.
2. Análise do processo retórico da imagem: conceitos chave
(Grau percebido e grau concebido; grau zero e isotopia, operações retóricas e
modos retóricos);
Neste vídeo podemos considerar que existem dois “graus zero”
- a imagem da terra marcada, e a imagem que mostra a sombra projetada no solo,
da minha silhueta. Podem ser consideradas “graus zero” pois, individualmente, a
imagem percebida corresponde à imagem concebida. Ou seja, a imagem das marcas
de pneus de bicicleta na terra é verosímil, não causa estranhamento, não foge à
norma. A imagem apreendida corresponde a um padrão pré-concebido no imaginário
de quem a vê. A imagem de uma sombra projetada no solo é também verosímil, não
há nada que, no geral, possa causar estranhamento. São isotopias.
O desvio aqui acontece quando as duas imagens se intercalam
e sobrepõe, parecendo por momentos que se transformam uma na outra ou que são
uma só. Fazendo com que as suas formas, à partida não assim tão semelhantes,
sejam forçadamente equiparadas pelo intercalar das suas
aparições no mesmo plano, não lado a lado, mas sobrepostas. Neste caso, se as
imagens fossem mostradas individualmente poderia haver um desvio da norma pelo
deslocamento de contexto, mas ao serem relacionadas deste modo há outro tipo de
desvio. Há uma associação entre elas que, à partida, não seria natural ou
intuitiva se não estivessem dispostas desta forma. É causada então a sensação
de alotopia.
“O trabalho da arte é o de jogar com a ambiguidade das
semelhanças e a instabilidade das dissemelhanças, de operar uma redisposição
local, um reagenciamento singular das imagens circulantes” (Rancière, p. 36)
Neste caso o gesto retórico (gesto de desvio) poderá
localizar-se no campo da substituição das imagens uma pela outra, sugerindo
camuflagem e renovação. Posso então considerar este um gesto inmutatio. Apesar
de uma forma (da primeira imagem) não se transformar na outra (segunda imagem),
pode-se dizer que a sugestão dessa transformação está presente, é sugerida pela
rápida transição de uma imagem para a outra, enganando o nosso olhar e
fazendo-o formar continuidades formais que ligam, por si só, as formas e faz
parecer que se transformam uma na outra. E de facto há momentos em que as
imagens se sobrepõe, literalmente, devido à ação dos candeeiros que piscam
indefinidamente. Este processo (gesto retórico) seria categorizado como
Transmutatio, que considero oportuno referir na análise deste vídeo.
Sobre os métodos retóricos, falados pelo Grupo μ, classifico
este um método de emparelhamento: ato paralelo, pois as imagens aparecem
intercaladas, são mostradas individualmente, apesar desse processo de
intercalar ser realmente rápido. Isto causa também momentos que poderiam ser
categorizados no campo do método de interpenetração: ato simultâneo pois as
imagens, como referi acima, por distorção ótica quase se sobrepõe – havendo
momentos em que se sobrepõe.
3. Os efeitos da alotopia; o que se pretende com o desvio?
A nível conceptual, o que poderá resultar desta alotopia
reside na metáfora. É uma autorrepresentação não totalmente pura mas próxima do
literal (a minha sombra) que se intercala, se compara a uma imagem, um desenho
na terra, e até à própria terra. Se fossemos mais longe, poderíamos dissecar o
significado de “sombra” e de “terra” e daqui retirar todo um conjunto de
significados. Para não falar da forma do desenho na terra que, ao sugerir a
forma de uma vulva é também autorrepresentativo. Mas, voltando a falar do
trabalho de Ana Mendieta: A artista foi exilada do seu país aos 13 anos de
idade, tendo sido separada das suas raízes
e da sua cultura em tenra idade. Afirma a artista que a sua forma de se
reconectar às suas origens é através da sua arte.
““I have been carrying on a dialogue between the landscape and the
female body (based on my own silhouette). I believe this has been a direct
result of my having been torn from my homeland (Cuba) during my adolescence. I
am overwhelmed by the feeling of having been cast from the womb (nature). My
art is the way I re-establish the bonds that unite me to the universe. It is a
return to the material source. Through my earth/body sculptures I become one
with earth… I become an extension of nature and nature becomes an extension of
my body. This obsessive act of reasserting my ties with the earth is really the
reactivation of primeval beliefs… [in] an omnipresent female force, the
alter-image of being encompassed within the womb, is a manifestation of my
thirst for being.”
Ana
Mendieta, 1981, Unpublished statement” (Perreault, p.10).
É desta origem
personificada na terra a que me quero referir. No meu caso, não no sentido de
origem nacional ou territorial, mas num sentido mais lato, mais essencialista. É
então, a minha vontade de me fundir com a terra, com a natureza, de ser
representada através dela e com ela, paralela à de Ana Mendieta. Quero aqui
representar essa origem, essência em
mim, presente, no entanto, em tudo e todos, pois tudo e todos vêm da terra (da
mãe).
4. Conclusão: Há um lugar para a retórica no pensamento
contemporâneo sobre as imagens e sobre os processos artísticos?
O mundo artístico (nos seus meios oficiais e amadores) está
permeado de retórica. É precisamente através desses processos retóricos que o
artista questiona, desafia e reinventa o mundo. É aqui papel do artista como o
de um filtro através do qual a(s) “realidade(s)”, ou a(s) isotopia(s) passa(m)
e é(são) intervencionada(s), com recurso a repetições, subtrações, substituições,
transmutações – todo o tipo de alterações – que permitem o repensar de
estruturas, e causam estranhamento – alotopia.
Bibliografia:
M.VISO,
Olga, Ana Mendieta – Earth Body – Sculpture and Performance 1972-1985, Hatje
Cantz Publishers.
DEL RIO,
Petra Barreras, “A historical overview”, In Ana Mendieta – A Retrospective, The
New Museum of Contemporary Art, New York, p.33
PERREAULT,
Jonh, “Mendieta’s body of work”, In Ana
Mendieta – A Retrospective, The New Museum of Contemporary Art, New York,
p.10
RANCIÉRE, Jacques (2011), O Destino das Imagens. Lisboa: Orfeu
Referências:
Documentos disponibilizados pelo professor Paulo Almeida - Seminário
de Desenho e Performatividade. Mestrado em Artes Plásticas. Porto: FBAUP.
Mostro aqui também um segundo exercício que realizei no contexto deste workshop,
mas que não foi analisado: