7.3.19

Fábio Araújo - Transferência de Uso


(1) Transferência-de-uso de uma ação para os suportes e processos de desenho

A minha folha de papel torna-se num teclado/máquina de escrever.

Imagino que me encontro à frente de um computador ou máquina de escrever, tendo uma série de frases que tenho que redigir com os dedos das minhas mãos (cobertos por tinta preta) numa folha de papel através de um desenho cego. 
Quando nos encontramos a escrever, geralmente deixamos de ter noção onde cada tecla se encontra, a nossa memória gestual acaba por assumir o controlo. Olhamos para o ecrã e escrevemos de uma forma quase inconsciente, mas, quando é necessário saber onde se encontra cada letra e não se tem uma referência visual, a tarefa torna-se bastante difícil, principalmente quando não se pode olhar para o que o está a acontecer na folha de papel. Existe aqui uma forte ligação entre o próprio ato de desenhar e o de escrever, aliás, a duas ações têm em comum a sua própria etimologia, do grego – graphos.

“Em vez de uma visão que exclua outras, eu queria desenhar os momentos que de uma ponta a outra fazem a vida, mostrar a frase interior, a frase sem palavras…Eu queria desenhar a consciência de existir e o fluxo do tempo”
 (Henri Michaux "Drawing the Fow of Time", "Untitled Passages by Henri Michaux", 2000, pág.7)

O resultado final não revela as frases que foram “escritas/desenhadas”, mas sim uma série de marcas e vestígios do contacto dos dedos com tinta no suporte, um código a ser decifrado, algo parasitário que invade e habita a folha de papel.






Realizei ainda a partir da primeira proposta um segundo exercício. Sendo a grisalha e o papel dobrado elementos comuns no meu trabalho pessoal, acabei por transpor os mesmos para esta proposta.


Matéria atravessada pelo vento do tempo passado, e até do tempo mais-que-passado, do tempo «trespassado» … Não nos surpreende, pois, verificar que a grisalha se impõe sempre que se trata de representar um tempo memorial, mítico ou sobrenatural: um tempo que, por definição, escapa à sua situação cronológica de história… 
(Georges Didi-Huberman, "Grisalha, Poeira e poder do tempo", 2011)

Começo por dobrar uma série de gravuras, remetendo para o ato de dobrar o papel, guardanapos ou panos, criando uma série de vincos e irregularidades no próprio suporte. De seguida peguei no trabalho e mergulhei-o numa aguada realizada a tinta da china, deixando-o submerso durante 8 minutos e 48 segundos. Passado o tempo proposto, pego no papel e por fim coloco-o a secar num estendal. O resultado é uma mancha acinzentada que habita a folha de papel. A tinta entranha-se pelo papel dobrado, depositando-se nos veios das dobragens criando manchas variadas por toda a folha.







(2) Transferência entre duas ações de campos performativos distintos

Plantei os meus pés e reguei-os com água.
Realizo inicialmente o ato de cavar um buraco no jardim da faculdade.
De seguida, num ato absurdo descalço os meus sapatos e coloco-me dentro do buraco cobrindo-o novamente com terra. Com o balde vermelho de água, rego (em excesso) os meus pés (cobertos de terra e plantados) até a água ficar à superfície.
Uma ação do quotidiano é desta forma transposta para um contexto absurdo, onde uma ideia de experiência e de consciência visual é gerada a partir da perceção háptica do contacto dos pés plantados com a terra e a água.



(3) Redireccionamento de um ato conotado com os meios desenho para um espaço físico

Circunscrever, riscar, reserva e apagar.

Os cantos de uma casa/planta possuem uma presença bastante forte e peculiar, definem pontos de ligação, de encontro, de início e de fim. A ideia de extinguir os cantos de um espaço arquitetónico surge como a ideia-base para a realização do exercício, criando desta forma uma planta circular (e sem fim?).
A partir da circunscrição no chão com um lápis obtém-se uma linha que define a área a ser preenchida. Esse preenchimento é dado através do carvão, um material abrasivo e bastante volátil que permite facilmente a correção e o apagamento.  
Apercebi-me também que ao realizar esta ação, faço uma ligação direta com o primeiro exercício onde trabalho com a gravura. Existe uma semelhança entre o resultado de extinguir os cantos de uma sala, dando-lhe o aspeto circular e arredondado com o próprio processo de preparação de uma chapa de calcografia através do arredondamento dos cantos e das bordas. 
Após a realização da ação, o desenho foi apagado, não deixando vestígios e indícios da mesma.