9.7.21

~ Trabalho Final ~

“Negócios com Deus”

Envolvido na discussão da Tradição e querendo tratar conceitos como a sua dinâmicaformas de apropriaçãoreencenamento, pretendo neste trabalho final usar as motivações e estratégias do workshop “Performance, Documento e Desenho” para a sua prossecução. O trabalho prático insere-se - ou melhor: tem origem - no Estúdio de Escultura do MAP.

 

A religiosidade - e a sua expressão popular - é, para mim, uma arcaica forma de convivência das comunidades cujo “progresso” nem sempre dissipou. A dinâmica e actualização destas práticas é sempre complexa e curiosa, pois está dependente de uma série de factores individuais e colectivos.

 

Na ausência ou extinção da realização de determinadas práticas populares proponho que se promova a sua continuidade, usando do reencenamento e da apropriação (através da retórica), sempre numa lógica de garantia da honestidade para com o acto performativo e para com o acto de religiosidade.

 

Não é complexo de entender, visto que se para um é o reenceamento para outro é a realização. Caberá ao indivíduo a decisão de tais parâmetros sustentado no que John Austin nos dá para discutir o envolvimento e a “honestidade” com que o acto é realizado. [1]

 

Assim, “negócios com Deus”, surge não só de um problema a ser analisado pelo interesse estético e conceptual, mas também como dissolução de memórias e actos praticados pelo circuito onde cresci. Numa tentativa constante de procura individual e colectiva, afirmada pelas práticas culturais locais e familiares:

 

Oriundo de um meio cultural e social onde as promessas e os ex-votos são formas de resolução para determinados problemas da vida, vi / vejo ainda, nas romarias locais, actos que acima de tudo me parecem necessitar de uma confirmação social: ora, na dinâmica das promessas e ex-votos, há uma substancial aprovação social, que é necessária para a garantia do seu cumprimento.

 

Curiosamente, a maioria destes actos foi forçosamente retirada dos contextos locais, muito por insistência dos párocos, mas sobretudo pela laicização das comunidades. Com o tempo fui-me apercebendo que as promessas passaram para um plano mais individual e próximo entre o utilizador e Deus, no seguimento da facilitação da resolução do conflito com Deus (por exemplo, o caso da “confissão universal”, que altera a relação do “conflito” entre paroquiano e Deus, anulando o pároco como intermediário).

 

O caracter social - ou melhor: comunitário -, das promessas tem particularidades interessantes: eu próprio cheguei a ser alvo de “anjinho” pela promessa de outrem.

 

Porém, no meu circuito familiar próximo desvaloriza-se este tipo de “negócios” que as pessoas tratavam com Deus no cumprimento destas promessas. Talvez daí o meu fascínio inicial, pela desvalorização destas práticas considerando-as injustificáveis. No entanto o meu interesse crescente pelas práticas etnográficas e folclóricas vieram despertar um novo paradigma: a necessidade de participar e experênciar esses actos.

 

A realização destes torna-se assim um híbrido. Se por um lado apenas interessa o seu caracter performativo, por outro a necessidade de uma componente religiosa é fundamental para o seu entendimento total. Emile Durkhien [2] sugere-nos “que a sinta tal como o crente pois ela não é verdadeiramente senão o que é para o crente”, baseando-se num tipo de introspecção do outro.

 

Partindo daqui, pretendo explorar o ex-voto e as promessas - portanto: religiosidade popular e as relações que se estabelecem entre um indivíduo e Deus na base do compromisso, tratado, ou negócio entre as partes – através da realização do reencenamento de uma dessas práticas.

 

Nunca tendo deixado de apreciar estas práticas da religiosidade, cada vez mais me envolvi com as estéticas e objectos que lhes estão associadas, nomeadamente as “mortalhas” em tule, os ex-votos de partes do corpo em cera, medalhas, pagelas e iconografias o mais aleatórias possíveis...

 

Ocupou-se a sociologia e a antropologia de estudar alguns destes fenómenos, porém foram o folcloristas e etnógrafos locais nos deixaram descrições extraordinárias de acontecimentos da religiosidade popular que hoje me interessa imenso explorar conceptualmente e - por necessidade ou resultado -  artisticamente.

 

Ernesto Veiga de Oliveira [3] expõe-nos práticas de promessas no contexto de várias romarias locais, indo desde o ex-voto tradicional (em objectos antropomórficos em cera, quadros pintados, ofertas de cabelo, etc.) a práticas mais específicas (como o roubo-ritual [4], os amortalhados, etc.). Noutra perspectiva etnográfica temos Moisés Espírito Santo [5] e Pierre Sanchis [6] que abordam a questão numa base mais social.

 

Tendo já explorando, noutros trabalhos, alguns destes objectos e práticas, pretendo analisar novamente estes numa perspecitva ou consciência maior sobre as questões perfomáticas ou performativas inerentes ao processo de apropriação e reencenamento.

 

Uma referência importante pode ser Francis Alys “The Modern Procession” (2002) não só a nível da utilização da reencenação, como também a nível da discussão das estratégias do documento na performance. Da mesma forma que Alys recupera retoricamente uma experiência, nomeadamente religiosa, para a discussão da Arte, proponho também passar por uma experiência que, através da arte possa discutir Tradição e identidade. 

 

Aqui surge a Procissão dos caixões, ou o Cortejo dos amortalhados, ou o Cortejo dos mortos-vivos. Daqui a intenção é clara: ir amortalhado, em esquifre.

 

São os desenhos de Alys, para “The Modern Procession” que me interessam mais, recuperando assim a discussão acerca da problemática do documento na performance. Na impossibilidade da realização imediata do acto performativo, que aliás pretende ser documentado por via do objecto e/ou vídeo-foto, uma estratégia importante para a performance é o desenho de planeamento da mesma. Posto isto, será o planeamento, que abaixo apresento, o objecto do restante documento.


The Modern Procession



Francis Alÿs The Modern Procession

New York, USA, 2002; 7:35 min, in collaboration with Rafael Ortega, The Public Art Fund and The Museum of Modern Art, New York

francisalys.com



Iniciei com uma pesquisa nas bibliografias supra e logo se arrastou para o meu circuito de folcloristas conhecedores de várias destas práticas quer em uso, quer em desuso. Rapidamente reuni várias romarias, porém apenas nestas apurei irem amortalhados em esquifre:

 

Senhora da Peneda (Gavieira - Arcos de Valdevez - Portugal)

Senhora da Aparecida (Torno - Louzada - Portugal)

Senhora da Saúde (Laúndos - Póvoa de Varzim - Portugal)

Santa Marta de Ribarteme (As Neves – Pontevedra – Galiza)

Nossa Senhora da Franqueira (A Cañiza – Pontevera – Galiza)




Destas 5 apenas uma, a de Santa Marta de Ribarteme parece ser a única onde o uso dos amortalhados em caixão não deixou de acontecer. Numa tentativa de reconhecer a origem do fenómeno procurei mais informações acerca destas práticas, porém, as mesmas são complexas e, de certa forma, não pertinentes para este trabalho.

 

Compreendi, no entanto, que a Romaria da Peneda seria a mais indicada, e de imediato procedi à recolha de informações iconográficas que me transportassem para o meio desse fenómeno e prosseguindo com a escolha dos componentes fundamentais para a realização desse acto performativo. (Anexos II)



[1] Acerca da Performative utterance

[2] Cit. por (SANTO, 1990, p. 13)

[3] (OLIVEIRA, 1984, pg 222)

[4] O roubo ritual, como processo específico de obtenção de objectos ou espécies definidas, destinadas a determinadas celebrações ou práticas costumeiras, aparece com relativa frequência em Portugal e em outros países. (Oliveira, 1984, pg 287)

[5] (SANTO, 1990)

[6] (SANCHIS, 1983)



 

ANEXOS I


Illustração Portugueza, 14 de Outubro de 1912, nr.º 347, pág.499 - No Minho Pitoresco - A celebre romaria da Penêda (Uma estranha superstição: os romeiros que numa promessa vão à romaria de tumba fingindo-se mortos)

Serões, Outubro de 1907, nr.º 29, pág. 334 - A Senhora da Peneda (o cumprimento de um voto, cortejo conduzindo uma mulher que fez a promessa de ir dentro de um caixão à Senhora da Peneda)

CRISTINA GARCÍA RODERO, 1975 - Una promesa a la vida. Amil 


CRISTINA GARCÍA RODERO, 1981 - La promesa de una madre. A Franqueira 


CRISTINA GARCÍA RODERO, 1981 - Antoñito. Ribarteme


Festividades Cíclicas em Portugal (1995), Ernesto Veiga de Oliveira - Fig. 16 Mondim de Basto, Senhora da Graça. Promessa em caixão.

Senhora Aparecida (1994) - Doc. 55min. Catarina Alves Costa 

ANEXOS II







BIBLIOGRAFIA (não referenciada supra)

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de - Festividades Cíclicas em Portugal, 1.ª ed. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1984.
 
SANTO, Moisés Espirito - A Religião Popular Portuguesa. 2.ª Ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990.
 
SANCHIS, Pierre - Arraial, festa de um povo: as romarias portuguesas. 1.ª ed. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1983.
 
DURKHEIM, Emile – Sessão na Union des Libres Penseurs et des Libres Croyantes, in “A Siencia Social e a Acção”, Lisboa: Bertrand, 1975. pp. 241 a 248