2.2.17

Sobre Mim, sobre ~

PREFÁCIO


A partir do trabalho “Sobre a Parede, sobre a ~”. Por sua vez, a acção da ekphrasis fez-me reflectir no próprio acto de escrever, que é, como refere Bergson, uma memória-hábito: um comportamento resultante da sua repetição, tratando-se de uma aquisição de mecanismos sensoriais e motores.

Como explorar a relação entre escrita e memória é uma urge pessoal, que procura perceber o meu próprio raciocínio, debrucei-me sobre a questão do narcisismo. Lipovetsky, acerca da arte moderna, refere que “é precisamente o narcisismo, a expressão a todo o custo, o primado do acto de comunicação sobre a natureza do que é comunicado... comunicar por comunicar, exprimir-se sem outro objectivo além de se exprimir e ser registado por um micro público, o narcisismo revela aqui como noutros lugares a sua conveniência com a dessubstancialização pós-moderna, com a lógica do vazio.” (A Era do Vazio, p. 16)

Assim, de modo a tentar perceber a memória da e presente na escrita, enveredei pelo narcisismo com o intuito de perceber a minha memória pela minha escrita. A escrita é gesto, e gesto é uma extensão do corpo, sendo performativa por esse gesto de movimento de dentro para fora, de invisível para visível:


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(…) drawn line that appear to be marked by the hand and, in extension, the artist’s body. (...) gestual mark-making therefore is, or appear to be, a trace of a performative action and embodied state (…).” (Deanna Petherbridge, The Primary of Drawing. p. 103)

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Ora, escrever é traduzir experiência vivida, intermediada pela memória, numa tentativa de espelhar as emoções do momento explorado. Este raciocínio, em conjunto com as questões postas em evidência acima, fizeram-me chegar às seguintes questões:


As questões

No sentido da transferência performática, que relação existe entre memória e representação? Quais são os movimentos e transformações desse processo? E como fixar esse processo, o gesto representativo de memória?
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A instrução

Para fixares a tua memória pelo gesto:

Faz uma lista que enumere palavras que se conectem a memórias pessoais.
Escreve um texto que as contemple pela ordem da lista anterior, de forma intuitiva.
Reescreve o mesmo texto em espelho horizontal.
Costura um macacão completo para ti.
Transporta esse texto para o fato, de modo a aprisionar as tuas memórias em ti.
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Olha ao espelho e vê-te: és feita de memória. 


1. Lista

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Realização de uma lista de palavras evocadoras de memórias de uma dia.



Clara Silva, Lista de Palavras-Memória (mão esquerda). Dezembro de 2017. Lápis de grafite HB s/ papel Munken Pure 150 gr./m2. A4.

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2. Elaboração de texto

Por forma a obter uma memória mais pura e imediata, utilizei uma máquina de escrever para o fazer.
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Clara Silva, A Garça Cor-de-Rosa, Dezembro de 2017, Máquina de escrever s/ papel, A3.



3. Redacção em espelho horizontal

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A terceira acção foi realizada em papel vegetal, para ser visível o espelhamento com mesa de luz. Ao escrever em espelho, poderei ler a minha memória num espelho. Repare-se que esta leitura terá sempre de ser mediada, como acontece connosco próprios: cada um de nós é a única pessoa no mundo que não pode olhar para si directamente.

Clara Silva, A Garça Cor-de-Rosa (mão esquerda, em espelho horizontal),
Janeiro de 2017, lápis de grafite HB s/ papel vegetal, 75x37,5 cm.


4. Transferência para fato aprisionador de memória

Vestir a minha própria memória faz de mim aprisionadora da mesma: um auto-enclausuramento de tempo, de relações, de marcas. Para atingir este objectivo, contornei o meu corpo no tecido, tal Donzela Coríntia com o amado, tal criança na primária.

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Conjunto de duas fotografias. Contorno corporal. Janeiro de 2017. Na foto: Clara Silva.


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Seguidamente, por forma a tornar possível o uso do fato, contactei um amigo meu finalista da Modatex, Domingos Estrela, para me cortar os moldes conforme o desenho obtido do contorno.


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Conjunto de duas fotografias. Com o Domingos a cortar os moldes. Janeiro de 2017.


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A partir daí, criei-me a mim própria, produzi o próprio suporte da minha memória, unindo as peças manualmente.



Conjunto de duas fotografias. Costura manual do fato. Janeiro de 2017. Na foto: Clara Silva.


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Seguidamente, fixei as memórias no meu eu espelhado, corporizado no fato.




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De modo a enfatizar a relação interior com exterior, visível com invisível, realizei um desenho de memória, espelhado, dos orgãos de que me lembrava mais distintamente.



Clara Silva. O Coração é Esquerdino. (É esta mesma afirmação que justifica a escrita com a mão esquerda
em algumas fases do projecto. Neste caso isso acontece. O desenho foi igualmente realizado com a mão esquerda)
Janeiro 2017. Tinta-da-china s/ papel vegetal. 152 x 107,7 cm (6 partes unidas).


 

Clara Silva. Sobre Mim, sobre ~. Desde a pintura à costura dos órgãos — em acabamento.
(O desvanecimento da tinta tem como intuito a denotação da pincelada e do gesto da caligrafia)
Janeiro 2017. Linha de costura e tinta têxtil s/ tecido de algodão cru. 152 x 108 cm. 


Clara Silva. Sobre Mim, sobre ~.
Janeiro 2017. Linha de costura e tinta têxtil s/ tecido de algodão cru. 152 x 108 cm. 


5. Sou feita de memória

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Por último, olhei-me ao espelho, observando a minha memória indirectamente em mim. De facto, a memória não é em si um processo directo, mas sim a marca que o Real percepcionado, o real, deixou em nós: a marca física percepcionada que se torna mental. Sobre mim, sobre ~, resgata a marca mental novamente para o mundo físico, ainda mais mediada.




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EPÍLOGO

O cumprimento da instrução corporiza, fixando o gesto representativo da memória, todas as relações referidas, como movimentos de transferência:

real — memória — representação de memória, indirecta e mediada representação de real;
representação — percepção mediada (pelo espelho);
memória — escrita
interior — exterior;
libertação de memória — enclausuramento do corpo;
invisível — visível
;
marca real — marca mental (memória) — marca física, real.

Como reflexão final destas relações, o real só existe na memória, desapareceu na sua pureza. A própria elaboração do projecto performativo desapareceu, não é visível, só imaginado — entrou, como denominado por Peggy Phelan, na via da desaparição. No entanto, o resultado do raciocínio encontra-se fixado no objecto final, que faz viver a memória através dele, trazendo um real, mais uma vez, mediado. Neste sentido, a documentação, segundo a perspectiva de Philip Auslander, é performática, pois transmite a informação do gesto. 





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BIBLIOGRAFIA

AUSLANDER, Philip (2006). The Performativity of Performance Documentation. PAJ: a Journal of
Performance and Art. 84. Vol 28, September 2006, pp. 1-10.
BARTHES, Roland (1985). Lo obvio y lo obtuso: imágenes, gestos, voces. Barcelona, Paidós.
BERGSON, Henri (1986 [1911]). Matter and Memory. Translated Nancy Margaret Paul and W. Scott Palmer. London: George Allen and Unwin.
LIPOVETSKY, Gilles (1989). A Era do Vazio. Relógio d'Água.
PETHERBRIDGE, Deanna (2010). The Primary of Drawing. New Haven. London University.
PHELAN, Peggy (1993). Unmarked: The Politics of Performance. London and New York: Routledge.
SPERLINGER, Mike [et al.] (2005). Afterthought. Rachmaninoff's.

 

 


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