PREFÁCIO
A
partir do trabalho “Sobre a
Parede, sobre a ~”. Por sua vez, a acção da ekphrasis
fez-me reflectir no próprio acto de escrever, que é, como refere
Bergson, uma memória-hábito:
um
comportamento resultante da sua repetição, tratando-se de uma
aquisição de mecanismos sensoriais e motores.
Como
explorar a relação entre escrita e memória é uma urge pessoal,
que procura perceber o meu próprio raciocínio, debrucei-me sobre a
questão do narcisismo. Lipovetsky, acerca da arte moderna, refere
que “é precisamente
o narcisismo, a expressão a todo o custo, o primado do acto de
comunicação sobre a natureza do que é comunicado... comunicar por
comunicar, exprimir-se sem outro objectivo além de se exprimir e ser
registado por um micro público, o narcisismo revela aqui como
noutros lugares a sua conveniência com a dessubstancialização
pós-moderna, com a lógica do vazio.” (A
Era do Vazio,
p. 16)
Assim,
de modo a tentar perceber a memória da e presente na escrita,
enveredei pelo narcisismo com o intuito de perceber a minha memória
pela minha escrita. A escrita é gesto, e gesto é
uma extensão do corpo, sendo performativa por esse gesto de
movimento de dentro para fora, de invisível para visível:
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“(…)
drawn line that appear to be marked by the hand and, in extension,
the artist’s body. (...) gestual mark-making therefore is, or
appear
to be,
a trace of a performative action and embodied state (…).” (Deanna
Petherbridge, The
Primary of Drawing. p.
103)
Ora,
escrever é traduzir experiência vivida, intermediada pela memória,
numa tentativa de espelhar as emoções do momento explorado. Este
raciocínio, em conjunto com as questões postas em evidência acima,
fizeram-me chegar às seguintes questões:
As
questões
No
sentido da transferência performática, que relação existe entre
memória e representação? Quais são os movimentos e transformações
desse processo? E como fixar esse processo, o gesto representativo de
memória?
A
instrução
Para
fixares a tua memória pelo gesto:
Faz
uma lista que enumere palavras que se conectem a memórias
pessoais.
Escreve um texto que as contemple pela ordem da lista
anterior, de forma intuitiva.
Reescreve
o mesmo texto em espelho horizontal.
Costura
um macacão completo para ti.
Transporta esse texto para o fato, de
modo a aprisionar as tuas memórias em ti.
Olha
ao espelho e vê-te: és feita de memória.
1.
Lista
Realização
de uma lista de palavras evocadoras de memórias de uma dia.
Clara
Silva, Lista de Palavras-Memória (mão esquerda). Dezembro de
2017. Lápis de grafite HB s/ papel Munken Pure 150 gr./m2. A4.
2.
Elaboração de texto
Por
forma a obter uma memória
mais pura e imediata,
utilizei uma máquina de escrever para o fazer.
Clara
Silva, A Garça Cor-de-Rosa, Dezembro de 2017, Máquina de
escrever s/ papel, A3.
3.
Redacção em espelho horizontal
A
terceira acção foi realizada em papel vegetal, para ser visível o
espelhamento com mesa de luz. Ao escrever em espelho, poderei ler a
minha memória num espelho. Repare-se que esta leitura terá sempre
de ser mediada, como acontece connosco próprios: cada um de nós é
a única pessoa no mundo que não pode olhar para si directamente.
Clara
Silva, A Garça Cor-de-Rosa (mão esquerda, em espelho
horizontal),
Janeiro
de 2017, lápis de grafite HB s/ papel vegetal, 75x37,5 cm.
4.
Transferência para fato aprisionador de memória
Vestir
a minha própria memória faz de mim aprisionadora da mesma: um
auto-enclausuramento de tempo, de relações, de marcas. Para atingir
este objectivo, contornei o meu corpo no tecido, tal Donzela
Coríntia com o amado, tal criança na primária.
Conjunto
de duas fotografias. Contorno corporal. Janeiro de 2017. Na foto:
Clara Silva.
Seguidamente,
por forma a tornar possível o uso do fato, contactei um amigo meu
finalista da Modatex, Domingos Estrela, para me cortar os moldes
conforme o desenho obtido do contorno.
Conjunto
de duas fotografias. Com o Domingos a cortar os moldes. Janeiro de
2017.
A
partir daí, criei-me a mim própria, produzi o próprio suporte da
minha memória, unindo as peças manualmente.
Conjunto
de duas fotografias. Costura manual do fato. Janeiro de 2017. Na
foto: Clara Silva.
Seguidamente,
fixei as memórias no meu eu espelhado, corporizado no fato.
De
modo a enfatizar a relação interior
com exterior,
visível
com invisível,
realizei um desenho de memória, espelhado, dos orgãos de que me
lembrava mais distintamente.
Clara
Silva. O Coração é Esquerdino. (É esta mesma afirmação
que justifica a escrita com a mão esquerda
em
algumas fases do projecto. Neste caso isso acontece. O desenho foi
igualmente realizado com a mão esquerda)
Janeiro
2017. Tinta-da-china s/ papel vegetal. 152 x 107,7 cm (6 partes
unidas).
Clara
Silva. Sobre Mim, sobre ~. Desde a pintura à costura dos
órgãos — em acabamento.
(O
desvanecimento da tinta tem como intuito a denotação da pincelada e
do gesto da caligrafia)
Janeiro
2017. Linha de costura e tinta têxtil s/ tecido de algodão cru. 152
x 108 cm.
Clara Silva. Sobre Mim, sobre ~.
Janeiro 2017. Linha de costura e tinta têxtil s/ tecido de algodão cru. 152 x 108 cm.
5.
Sou feita de memória
Por
último, olhei-me ao espelho, observando a minha memória
indirectamente em mim. De facto, a memória não é em si um processo
directo, mas sim a marca que o Real percepcionado, o real,
deixou em nós: a marca física percepcionada que se torna mental.
Sobre
mim, sobre ~, resgata
a marca mental novamente para o mundo físico, ainda mais mediada.
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EPÍLOGO
O
cumprimento da instrução corporiza, fixando o gesto representativo
da memória, todas as relações referidas, como movimentos de
transferência:
real
—
memória — representação de memória, indirecta e mediada
representação de real;
representação
— percepção mediada (pelo espelho);
memória —
escrita
interior — exterior;
libertação
de memória — enclausuramento do corpo;
invisível
— visível
;
marca
real
—
marca mental (memória) — marca física, real.
Como
reflexão final destas relações, o real
só
existe na memória, desapareceu na sua pureza.
A própria elaboração do projecto performativo desapareceu, não é
visível, só imaginado — entrou, como denominado por Peggy Phelan,
na via
da desaparição. No
entanto, o resultado do raciocínio encontra-se fixado no objecto
final, que faz viver a memória através dele, trazendo um real,
mais uma vez, mediado. Neste sentido, a documentação, segundo a
perspectiva de Philip Auslander, é performática, pois transmite a
informação do gesto.
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BIBLIOGRAFIA
AUSLANDER,
Philip (2006). The Performativity of Performance Documentation.
PAJ: a Journal of
Performance
and Art. 84. Vol 28, September 2006, pp. 1-10.
BARTHES,
Roland (1985). Lo obvio y lo obtuso: imágenes, gestos, voces.
Barcelona, Paidós.
BERGSON,
Henri (1986 [1911]). Matter and Memory. Translated Nancy
Margaret Paul and W. Scott Palmer. London: George Allen and Unwin.
LIPOVETSKY,
Gilles (1989). A Era do Vazio. Relógio d'Água.
PETHERBRIDGE,
Deanna (2010). The Primary of Drawing. New Haven. London
University.
PHELAN,
Peggy (1993). Unmarked: The Politics of Performance. London
and New York: Routledge.
SPERLINGER,
Mike [et al.] (2005). Afterthought. Rachmaninoff's.
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