5.6.18

Desenho enquanto ato de presença

Ele cortou o papel branco no tamanho de uma toalha de mesa longa e posicionou duas cadeiras de modo a ficarem de frente uma para a outra. Sentei. Então, ele dispôs uma caixa de carvão em cima de um banco ao meu lado. Colocamos o papel  sobre o colo. Apoiado, o papel parecia uma toalha estendida em uma mesa inexistente.
Afastados pela extensão do papel, ele contou o que o havia incitado a realizar tal trabalho. Devido ao barulho da sala, foi necessário nos aproximarmos, pendendo o corpo para a frente, forçando o limite da extensão ao mínimo sem que movêssemos o papel.
Contou-me sobre a mãe enferma, das visitas ao hospital e mostrou-me alguns de seus desenhos, retratos dela no leito. Disse ter percebido no desenho um modo de lhe fazer companhia sem que fosse necessário conversar.
Revelou que sua proposta era de retratar-me, enquanto o fazia eu poderia fazer o que eu bem entendesse, desde que permanecesse sentada. Concordei.
Percebi que o papel não era uma toalha, era um lençol.  
Ele deu inicio ao desenho no extremo do seu colo enquanto eu pegava um bastão de carvão que estava ao lado. Não me apetecia desenhar.
Comecei a girar o carvão entre os dedos, tentando manchar minhas mãos de negro, talvez pudesse imprimi-las depois no papel. Acabei por notar que parte do carvão se esfarelava enquanto eu o manipulava e o pó ia aos poucos se depositando na superfície branca do meu colo.
Olhei o carvão e pensei na fragilidade do material. A textura seca e quebradiça lembrou-me um osso.
Pensei na conversa que tive com minha mãe naquela manhã ao telefone, ela mencionou dos problemas de saúde mais recentes de minha avó materna, que estava com herpes. Um vírus decorrente da contração de catapora quando miúda. Explicou-me que grande parte das pessoas possuem o vírus e que na maioria das vezes ele não se manifesta, apenas quando a resistência abaixa demasiado. Contou que já estava sendo medicada e que ainda sentia dor. Segundo a médica, é um vírus que caminha pelos nervos e não tem previsão de melhora. Choramos, eu e minha mãe.
Comecei a desgastar o carvão com as unhas dos polegares enquanto girava o bastão entre os dedos. O atrito raspava a matéria ao mesmo tempo que lixava minhas unhas.
Girava o carvão constantemente, minhas unhas percorriam a haste de forma simétrica, das extremidades em direção ao meio. As pontas do bastão conservavam o tamanho original, tal qual o centro do mesmo, formando assim um gap entre o movimento dos meus dois dedos. Eles nunca se encontravam no ponto médio.
Fiquei a pensar em minha avó. Lembrei-me de quando minha mãe operou de um Meningioma e também tive de cuidar dela ao sair da cirurgia. Cheguei a passar cerca de duas horas lavando seu cabelo com uma toalha úmida afim de retirar todos os resíduos de iodo e sangue seco de seus cabelos, evitando molhar o corte suturado no couro cabeludo.
Desgastando o carvão, quase chorei. Prendi o choro, minhas lágrimas ativeram-se na superfície dos meus olhos embaçando minha visão. Não queria chorar. Tentei focar no carvão e já não o via com definição. Respirei profundamente e continuei a girar e desgastar.
A cada turno, a pilha negra aumentava de densidade sobre meu colo.
Espiei o desenho dele, mesmo longe me reconhecia no retrato. Questionei-me quando ele começaria a me desenhar, não apenas representar minha feição. Quanto tempo levaria para o desenho dele se tornar o que estava a acontecer ali, na ponta do papel observado. O retrato de mim que ocorria entre meus dedos.
Voltei minha atenção para o carvão, lembrei-me da história de sua mãe, conseguia imaginar a cena.
Eu também estava a usar o carvão como uma desculpa para evitar um contato mais direto e para distrair-me de minha auto-consciência.
Olhei o carvão e lembrei-me dos ossos. Percebi como tempo implicado pelo meu gesto circular ia deteriorando a matéria, consome tudo e todos.
Decidi que eu seria o tempo e o carvão os ossos, ou um corpo. Decidi esmerilha-lo até o limite de sua fragilidade material. Meu desenho era o que ocorria em minhas mãos, o que era marcado, cunhado no carvão. O negro era apenas um substrato do processo que formava uma outra imagem, uma linha do tempo como a areia de uma ampulheta a depositar-se no fundo de um recipiente.
Desliguei-me, apenas atuava. Não sei quanto tempo havia passado até que o carvão partiu-se do lado direito. Não havia chegado ao limite do material, havia sido demasiada dura. Continuei o processo com a outra parte que restou. Inclui os indicadores na equação e passei a usar os polegares de suporte para poder efetuar um movimento mais delicado.
Espiei novamente a outra ponta do papel, ele havia terminado o retrato e agora estava a o “apagar”. Não completamente, transformava-o no retrato da ação e pensei “agora ele começou a me desenhar”.
Continuei minha parte do desenho, não sabia ao certo quanto tempo levaria o processo, mas tinha a certeza que eventualmente perceberia o fim.
Atingi o limite, deitei o carvão de lado no mesmo banco que o peguei. Ambos deitamos o papel no chão. A pilha negra que havia se formado em meu colo andou pela folha deixando um rastro cinza. Sabia que ela não ficaria intacta, o que não era um problema em si visto que a pilha não era o desenho, era só o registro de uma ação. O desenho estava contido no bastão.
Fui ver meu retrato, eu estava ali, entre o compreensível e o apagado. Todos aqueles emaranhados de linhas e a ausência delas.
Acho que meu desenho continha muito da história dele.

No final, aquele papel/lençol acomodava uma conversa, silenciosa.